JP ®
…Já passaram alguns anos…
…A chuva miudinha, soprada a vento de rajadas
desiguais, espalhava-se ao meu lado, esculpindo agulhas líquidas na vidraça da
cafetaria…
…Ela acabou de conversar circunstancialmente
com uma colega, despediu-se com um tchau rápido e voltou o rosto de novo na
minha direcção, sentada do outro lado da mesa, almoço terminado, café quente nas
chávenas à nossa frente…
- …E então conta-me, o que tens feito…?
…Dei um gole leve no espresso e encolhi os
ombros…
- …Nada de especial – acendi um cigarro – E
tu, como vais, novidades…?
Esticou a mão para agarrar no meu Zippo.
-…Para além de continuares a fumar,
infelizmente… - comentei meio a sério, meio a brincar.
…Sorriu e soprou a primeira baforada do
cigarro recém aceso e deu-me um olhar tipo “não te preocupes com isso”...
…Retomamos a conversa, colocando-a em dia
(família, emprego, pequenas trivialidades), naquele encontro combinado meio
casualmente, tanto tempo depois de nos termos cruzado uma ou outra episódica
vez…
- …E a tua filhota ? Deve ‘tar enorme, não…?
…Os olhos dela brilharam mais ainda que o
habitual e a voz intensificou a sua alegria quando falou da menina…
…Relembrou-me o nome da petiz (…ainda que eu
me lembrasse bem dele…), enquanto me mostrou orgulhosamente no telemóvel duas
ou três fotos duma miudinha, com uns olhos vivos, ar radiante, sorriso franco…
- Pareces tu em ponto pequeno… mais pequeno
ainda, quero dizer… - gracejei.
…Do alto do seu metro e sessenta, soltou uma
gargalhada com gosto que é uma das suas imagens mais marcantes que sempre retive
na memória…
…Uns longos segundos de silêncio pairaram…ela
segurando o aparelho entre os dedos duma mão, eu apoiando-o para melhor ver as
imagens…os olhos de ambos focados nelas…
- Muito bonita, a tua nina… - constatei.
…E ela disparou-me um tiro no coração…
-…Podia ser a tua filha, sabes…? – disse num
sussurro rouco.
…Inspirei fundo, como quem recupera depois de
ter levado um delicado soco no estômago. Evitei inconscientemente cruzar de
imediato o meu olhar com o dela, esfreguei lentamente os olhos e a face, de
cotovelos apoiados no tampo.
-…Mas não é, pequerrucha… - pousei as mãos -
…e de certeza que ‘tás bem melhor assim…
…O ar dela estava sério, mas com um esboço de
sorriso a aflorar-lhe os lábios…
-…Isso não sabemos, não é, rapaz…? – desviou
um fio de cabelo da face e desenhou no rosto umas características covinhas no
canto da boca.
E com aqueles luminosos olhos castanhos a acariciarem-me
docemente…
E a fazer-me recordar…
…Os mesmos olhos que, quase um década antes,
enquadrados num rosto lindo, se cruzaram, de forma fugaz mas intensa, com os
meus e me encadearam e prenderam no meio da alegre confusão dumas festas
campestres de Verão…
…Olhos que logo perdi de vista no meio do
turbilhão e que no preciso momento em que tentava indagar a quem pertenciam,
voltaram a surgir, minutos depois, como por magia e para minha imensa surpresa,
na minha frente, encimando um corpo jovem, envolto numa blusa branca e colete vermelho,
em perfeito contraste com os cabelos lustrosamente negros…e uma voz cristalina que
me soltou um “Olá” alegre, sonoro e prolongado…
…Olhos de alguém que amei muito, mesmo que
nunca tivesse provavelmente dito o quanto muito e tantas vezes como lhe o
deveria ter dito… e sei agora o quanto sentiu a falta disso…
…Olhos de alguém que, apesar bem mais nova que
eu, era em vários aspectos, talvez, mais madura que eu…
…Olhos de alguém que me surpreendia, de forma refrescante e tantas vezes, pela forma de ser, de pensar, de agir…
…Olhos de alguém que, para além de todo o seu
corpo e alma, me ofertava coisas tão simples, belas e significativas…
…Olhos de alguém que cheguei a pensar, mesmo
com todas as nossas várias diferenças que no fundo nos completavam um no outro,
vir a ser cúmplices e companheiros dos meus no resto da vida…
…Olhos de alguém que, por minha luxúria e egoísmo
meu, decepcionei e magoei de forma muito profunda e dolorosa e que enchi de
lágrimas…lágrimas que depois, mais tarde, de modo irónico e quase catártico,
acabaram por cair dos meus por ela…
…Olhos de alguém que sempre observei depois e
à distância reservada, crescer mais ainda como pessoa, mulher, esposa, mãe e
sentir um certo orgulho de ter sido amado por tal ser humano…
…Os mesmos olhos que agora, ali à minha
frente, continuam a fitar-me assim…suaves e penetrantes, intensos e meigos…a
dizerem-me que, ainda assim, sempre me amaram…
…Afastei o pensamento destas lembranças e
desci à terra…
…Olhei o relógio…era dia de semana…ela tinha
que voltar à vida dela e eu à minha…mesmo que não fosse dia de semana seria
assim…
- Tenho que ir… - disse baixinho.
- Eu também – concordou.
…Acompanhou-me à saída antes de eu regressar à
rua… a morrinha continuava, mas o vento amainara…
…Despedimo-nos com um abraço longo, um beijo
carinhoso na testa e na face, senti-lhe o hálito fresco e o quente da pele,
evitei a tentação e a vertigem que (senti mútua) de tocarmos, mesmo ao de leve,
os lábios de um no outro…
Eu não o mereço fazê-lo, ela não merece que eu
o faça e existe mais alguém que não o merece também…
…Senti um estremecimento no corpo… não sei se
era meu, se era dela, se era de ambos …ou se era, simplesmente, da corrente de
ar que por ali passa…
…Apartamo-nos com as promessas usuais de quem
se vê de longe a longe, quer pela voragem dos dias, quer por circunstâncias
várias…
- Vamos-nos vendo, ‘tá…?
- Sim, claro…telefona.
- Sim, diz qualquer coisa também.
- Tomamos um café depois, um destes dias.
…Dei-me conta de que as nossas mãos estão
esquecidas umas nas do outro…
…Afastei-me devagar, acenei-lhe com um meio
sorriso que me devolveu, antes de me virar definitivamente rua baixo,
desviando-me das poças de água no asfalto, enquanto evitei (a contra-gosto) olhar
para trás uma ultima vez para vislumbrá-la…pensando que, ainda assim, tanto
ficou para dizer…
…A mais bela rosa ficou lá atrás e, de alguma
forma, talvez tenha resgatado alguns dos espinhos que lhe dei anteriormente… e
levei-os cravados no peito…
...Já passaram alguns anos (e ainda cá permanecem…).
JP ®