ilustração: "Sem descâncio", por Henrique Monteiro, in http://henricartoon.pt/
A tragédia de Fernanda Câncio - por João Miguel Tavares
Um amigo
disse-me que o texto ferino que Fernanda Câncio escreveu esta segunda-feira no DN –
“A tragédia de Sócrates” – foi como declarar guerra à Alemanha em 1945.
Acertado, mas tardio. Países que declararam guerra à Alemanha em 1945: Equador,
Paraguai, Peru, Uruguai, Egipto, Turquia, Arábia Saudita, Argentina. Temos de
admitir que não são os melhores exemplos do mundo, tal como o seu texto não é o
melhor exemplo de elegância e de timing – foi escrito com três
anos e meio de atraso, e após o PS em peso puxar o tapete a Sócrates. Ainda
assim, devo dizer que fiquei muito satisfeito por Câncio ter escrito o que
escreveu, e por isso, no momento em que toda a gente a acusa de hipocrisia e
outras maldades, apetece-me ensaiar uma defesa da sua pessoa, ainda que para
Fernanda Câncio as minhas defesas se pareçam extraordinariamente com ataques.
Primeiro
ponto, e ponto fundamental: eu, que ando há dez anos a escrever contra
Sócrates, acredito em Fernanda Câncio. Acredito que ela não sabia que ele era
corrupto. Acredito que Sócrates foi construindo ao longo da sua vida uma rede
de caixas estanques, onde as pessoas de uma caixa pouco ou nada comunicavam com
as pessoas de outras caixas. Acredito que ela engoliu a história da herança
familiar. Acredito que se houvesse algum indício forte contra si na Operação
Marquês o Ministério Público não teria hesitado em acusá-la. Até
porque, convenhamos, era isso que apetecia fazer – pela sua atitude arrogante
nos interrogatórios, por tudo aquilo que tem escrito contra a Justiça, pela
postura absurda que manteve ao longo dos anos, pela mania de calar o essencial
e vociferar sobre o acessório.
A
tragédia na vida de Fernanda Câncio chama-se José Sócrates, mas infelizmente
Câncio nunca foi capaz de admitir em público essa dimensão trágica, desde logo
porque implicaria assumir uma humildade e uma fragilidade que ela recusa ter.
Fernanda Câncio, a repórter orgulhosa do seu feminismo e a lutadora pelos
direitos das mulheres, deixou-se deslumbrar pelo exemplo mais básico e
caricatural do macho-alfa. Fernanda Câncio, uma das grandes jornalistas de
investigação portuguesas, foi incapaz de perceber o carácter do político com
quem namorou anos a fio, protegendo-o como se fosse uma vítima quando dezenas
de pessoas o acusavam de ser mentiroso e corrupto. Fernanda Câncio, a defensora
feroz da vida privada, viu o próprio José Sócrates demonstrar porque é que
tantos detalhes classificados como “de revista cor de rosa” deviam ter sido
notícia em jornais de referência. Perante um homem profundamente manipulador, é
bem possível que ninguém tenha sido tão manipulado quanto a inteligente, perspicaz,
talentosa, feminista, independente e reservada Fernanda Câncio.
Se isto
já não bastasse enquanto tragédia, há ainda mais esta: o seu texto de
segunda-feira no DN é bom, mas não chega. Um colunista, quando
se engana estrondosamente durante anos a fio, não comete apenas um erro pessoal
– esse erro contribui para enganar todos aqueles que o lêem e admiram. A
traição de Sócrates a Câncio foi-se propagando até ela própria trair todos
aqueles que estavam a lutar contra Sócrates e que ela criticou; todos aqueles
que alertavam para um país asfixiado e que ela ridicularizou. Se a profissão de
Câncio é escrever, então que escreva. Ninguém nos pode explicar a cabeça de
Sócrates tão bem quanto ela. Fernanda Câncio admitiu finalmente que se enganou.
Óptimo. Falta agora explicar-nos o como e o porquê.
Publicado por João Miguel Tavares,
em 8 de Maio de 2018 in jornal “Público”