Rui Manuel Trindade Jordão
(9 de Agosto de 1952, Benguela, Angola -- 18
de Outubro de 2019, Cascais, Portugal)
Um homem, profissional de futebol, ímpar em tantos aspectos, a começar por duas características que sempre o destacaram de tantos (muitos) outros: cultura e educação.
E o que ele me fez sonhar (quase acreditar) numa certa noite de 23 de Junho de 1984 em Marselha...
Obrigado, Rui, até sempre...
(Artigo de Nuno Fernandes, em 18-10-2019, in
Diário de Notícias on-line)
Morreu Rui Jordão, o grande goleador que se zangou com
o futebol
Chamavam-lhe Gazela de Benguela e
chegou a ser apontado no Benfica como o sucessor de Eusébio. Mas foi no
Sporting que ganhou mais estatuto ao lado de Manuel Fernandes e Oliveira.
Quando encerrou a carreira afastou-se do futebol e dedicou-se à pintura.
Rui Jordão morreu nesta sexta-feira aos 67 anos. O
ex-jogador estava internado no Hospital de Cascais devido a problemas cardíacos
e ainda recentemente tinha recebido a visita de uma delegação do Sporting,
encabeçada pelo presidente Frederico Varandas.
Jordão foi um dos melhores avançados do futebol português, com uma
carreira de grande mérito ao serviço de Benfica, Sporting e na seleção
nacional. Mas quando se retirou, em 1989, ao serviço do Vitória de Setúbal,
impôs a si mesmo um silêncio durante vários anos, que apenas foi quebrado
esporadicamente para falar da carreira de artista plástico a que se dedicou após deixar os relvados, depois
de ter tirado um curso de pintura da Sociedade Nacional de Belas Artes.
"[O futebol] é um mundo demasiado objetivo, material e ruidoso.
Era impossível encontrar outras formas de expressão que não fossem dentro dos
relvados. A bola é um objeto egoísta e centralizador. Foi por isso que
desapareci do meio durante muitos anos. Só o silêncio seria capaz de permitir o
reencontro com o meu outro eu. Não sei qual dos dois é mais verdadeiro, mas quando comecei a pintar descobri uma outra forma de
comunicar com os outros", disse em novembro de
2000, por ocasião da primeira exposição que fez, em Algés, quando interrompeu
um silêncio que durava há 10 anos.
"O futebol já não me condiciona, já não define a minha forma de
compreender e estar na vida. Hoje, os meus dias decorrem sem esse centro. Enquanto
joguei, todos os meus comportamentos, ou pelo menos a maioria, gravitavam
naturalmente à volta do futebol. É uma profissão exigente, que pede muito no
dia-a-dia e ocupa muito espaço no quotidiano. Atualmente, o meu calendário é
outro. Se sei que há um jogo importante, tento logicamente vê-lo. Mas pode até
acontecer que entretanto me esqueça e faça outras coisas", disse nessa
mesma altura numa entrevista ao jornal Record.
De Benguela para o Benfica
Rui Manuel Jordão nasceu a 9 de agosto de 1952, em
Benguela, Angola. Estreou-se nos juniores do Benfica com 19 anos, em 1970.
Chegou proveniente do Sporting de Benguela, onde também praticava atletismo, a
troco de 30 contos. E na época seguinte subiu à equipa principal, estreando-se
pela mão do treinador Jimmy Hagan, numa equipa que tinha como avançados nomes
como Eusébio, Nené, Vítor Baptista e Artur Jorge.
A estreia pela equipa principal dos encarnados no campeonato nacional
aconteceu em outubro de 1971, quando num jogo do campeonato diante do Beira Mar
entrou para o lugar de Nené aos 74 minutos (antes
tinha jogador uns minutos frente ao Innsbruck, na Taça dos Campeões Europeus).
Ficou seis anos no clube da Luz, período onde se sagrou quatro vezes campeão
nacional, marcando 60 golos nos 90 jogos que disputou na prova. Na altura era
já presença assídua na seleção nacional (estreou-se com José Augusto como
selecionador), ele que aos 22 anos chegou a ter a carreira em risco devido a
uma grave lesão no menisco.
Quando deixou o Benfica, Rui Jordão
transferiu-se para Espanha (o clube da Luz recebeu nove mil contos), para
representar o Saragoça (também se falava no interesse do PSG, Bétis e Bayern
Munique), onde assinou um contrato de três épocas que na altura lhe rendiam 3,5
milhões de pesetas/ano, quatro vezes mais do que auferia em Portugal. Realizou
33 jogos pelo clube do país vizinho, mas apesar de ter marcado 14 golos, não
foi feliz, muito por culpa da má relação com o paraguaio Arrua. Descontente,
forçou a saída e regressou a Portugal.
O Sporting nos melhores anos da carreira
O destino foi o Sporting, respondendo afirmativamente ao convite que
lhe foi feito por João Rocha, clube que representou durante nove temporadas
(apenas com um empréstimo aos americanos do Jacksonville Tea Men) e onde se
tornou num verdadeiro ídolo, sendo ainda hoje recordado com um dos melhores
jogadores que vestiu a camisola verde e branca. Pelo Sporting, onde formou uma
dupla de sucesso com Manuel Fernandes, conquistou mais dois títulos de campeão
nacional (79/80 e 81/82), uma Taça de Portugal (1981/82) e uma Supertaça
Cândido de Oliveira (1981/82). Foram 282 jogos e 184 golos marcados.
Na etapa do Sporting chegou a ser
seduzido pelo FC Porto, que já era presidido por Pinto da Costa. Mas manteve-se
fiel ao seu clube do coração, apesar de ir perdendo espaço na equipa, culpa das
várias lesões que sofreu - rotura de ligamentos no joelho e duas pernas
partidas. Descontente, acabou por deixar Alvalade, assinando pelo Vitória de
Setúbal, clube onde ainda realizou duas temporadas antes de arrumar de vez as
chuteiras, e onde reencontrou o treinador Malcolm Alisson e o colega e amigo de
sempre Manuel Fernandes. Em final de carreira, ainda foi uma vez chamado à
seleção nacional, com 36 anos, na sequência dos castigos que foram aplicados a
vários jogadores que estiveram no famoso caso de Saltillo.
Os dois golos à França no Euro84
Jordão foi também figura na seleção nacional, com 43
internacionalizações e 15 golos marcados. Um dos jogos mais memoráveis
aconteceu no célebre Europeu de 1984, no qual Portugal chegou às meias-finais
do torneio, afastado pela França. Nesse jogo, em
Marselha, o avançado natural de Angola brilhou e marcou os dois golos na
derrota por 3-2 que se viria a consumar no prolongamento. Convém
lembrar que já tinha sido Jordão a colocar Portugal na prova, com um célebre
penálti em que bateu Renat Dassaev e apurou a seleção nacional numa partida
diante da URSS.
Depois de terminar a carreira remeteu-se ao silêncio e
dedicou-se às artes. Esteve vários anos sem frequentar estádios de futebol,
recusou sempre dar entrevistas que não fossem para falar de pintura, e só
recentemente começou a ser visto nas bancadas de Alvalade a assistir a jogos de
futebol. Um silêncio, contudo, que não o apagou da memória dos adeptos.
"A estética do futebol marcou-me e
ajudou a definir-me o caráter. Em certos movimentos que fazia dentro do campo é
possível ver coreografias, traços que provavelmente também se manifestam
naturalmente no pincel. São duas linguagens muito diferentes; no entanto, é
possível encontrar semelhanças. Mas o que o futebol não tem é o silêncio que preciso
para mostrar a verdade que, enquanto jogador, ocultei. Talvez falte mais silêncio ao futebol", disse há uns bons anos, quando ainda estava zangado de
forma irreversível com o futebol.