sábado, 25 de janeiro de 2020

...Paulo Gonçalves (...in memoriam...)

Paulo da Silva Gonçalves
(Gemeses, Esposende – Portugal, 05-02-1979 --- Layla – Arábia Saudita, 12-01-2020)

Antes de mais, devo confessar que não tenho muita simpatia pelos motards… Pelo menos pela esmagadora maioria daqueles com os quais, de uma forma ou de outra, me cruzei na vida… Falta de civismo, arrogância e boçalidade, são as “qualidades” que me saltam mais à mente quando me recordo de alguns… Isto é mera opinião, mas é fruto de experiência feita em várias e diferentes ocasiões ao longo da minha vivência… No entanto, também devo salientar igualmente que conheço outros, dos quais até tenho o privilégio de compartilhar amizade, que são seres humanos magníficos…
Paulo Gonçalves foi alguém enquadrado nesta elite de pessoas, pelo que tantas outras sempre relataram e testemunharam…Para mim, desde o episódio com Cyril Despres (…claro, que tinha de ser um francês montado na “grandeza chauvinista”…) que Paulo Gonçalves mostrou (uma vez mais e aí com mais notoriedade) a enormidade do seu caracter, fair-play e humanismo…  Como o povo diz, “Deus leva os melhores e os que mais ama”…e Paulo Gonçalves era enorme entre os melhores e era bastante amado.



O texto que segue foi publicado por Diogo Pombo, no Tribuna Expresso on-line, no dia seguinte ao falecimento do Paulo Gonçalves. Na profusão de notícias, artigos e testemunhos que se seguiram ao fatal acontecimento, a simplicidade deste escrito é uma perfeita homenagem ao homem, mais que tudo o mais, que foi Paulo Gonçalves.



Em vida, Paulo, em vida

Temam-na, abracem-na, anseiem-na ou venerem-na, a morte é a condição mais certa para os humanos, creio a mais humana que há, porque nada em nós é tão paradoxal como o momento em que o coração pára, o sangue trava, os órgãos desligam, o cérebro frena e à consciência acontece o que vivalma sabe, mas tanta, tantíssima gente, se esforça por adivinhar, pregar, filosofar e garantir.
A morte é o tema dos vivos, quem morre é sentido por quem vive, os que se vão são louvados pelos que ficam e a pessoa que vai sem retorno não lê, nem ouve, os louvores que os vivos reservam aos enlutados, uma vez mortos, que me parece a mais estapafúrdia espera a que os humanos se devotam, já escrevia a mexicana Ana María Rabatté:

No esperes a que se muera
la gente para quererla
y hacerle sentir tu afecto
en vida, hermano, en vida…
Nunca visites panteones,
ni llenes tumbas de flores,
llena de amor corazones,
en vida, hermano, en vida…

Esperámos que Paulo Gonçalves caísse da moto, o corpo tombasse na areia, o coração parasse e morresse no deserto, sozinho, entre grãos de areia onde, dependesse dele, jamais deixaria alguém a solo, para recordarmos o quão exemplar foi em vida.
No Dakar, o português afundou-se em lama para ajudar quem mais fundo estava, safar Cyril Després e vê-lo a virar-lhe as costas, sem retribuir a ajuda e arrancar sem dó, piedade ou companheirismo, qualidades que se dizem humanas e que Paulo voltou a mostrar, anos depois, quando parou mal viu Matthias Walkner tombado, a sofrer com ossos partidos, não o abandonando enquanto não chegasse ajuda.
De Paulo Gonçalves conheci o que deixou na televisão, nos jornais e em quatro ou cinco telefonemas de trabalho. Era simpático, prestável e atencioso, não há pilotos, mecânicos, dirigentes e amigos que o desdigam, em público, desde domingoinvocando a forma como agiu durante os 40 anos que viveu, porque as palavras de nada valem se os atos não falarem por elas.
Se, na morte, o que se recorda de um desportista é o homem justo, companheiro, íntegro, prestável, humilde, sempre ajudante e, apenas depois, o que ganhou a pilotar motos, então no piloto está o melhor exemplo possível para se ser, e estar, no desporto e em competição. “Não sou um herói, sou um ser humano com respeito pelos outros”, disse, uma vez, enquanto modalidades mais praticadas, muito mais vistas, nunca paravam de sugerir que para ganhar vale tudo, que só se estamos bem se estivermos contra os outros e que os insultos fazem parte.
Em vida, Paulo Gonçalves foi um exemplo de como o desporto e a competição apenas valem se, lá dentro, todos estiveram bem, sãos, saudáveis e forem uns para os outros quando houver quem assim não esteja. Competir, ganhar e perder deveria sempre vir depois, muito depois.
Publicado por Diogo Pombo, em 13-01-2020, no Tribuna Expresso on-line https://tribunaexpresso.pt/