…castanho… é a cor que associo ao meu primeiro beijo…
…ao meu “verdadeiro” primeiro beijo (“french kiss” ou
beijo de língua), já que as beijocas na face ou de fugida nos lábios, em
namoros envergonhados de infância não os posso considerar como tal…
…castanho dourado das folhas do Outono que terminava,
dos cor dos olhos e dos tons do cabelo dela…
…e castanho escuro da cor do chocolate…
…teríamos ela e eu, 11/12 anos… andávamos na mesma
escola, mas não na mesma turma… morávamos no mesmo bairro, relativamente perto
um do outro, embora só nos tivéssemos cruzado e falado um com o outro nos
corredores ou no pátio, no intervalo ou, uma por outra vez, à saída no fim das
aulas…
…Manuela era uma miúda gira, de olhar vivo, cabelos
longos até pouco abaixo dos ombros e com um tom moreno de pele…
…nesse dia de manhã, de sol a prometer Primavera
embora com uma brisa fresquinha no ar, fiz as poucas centenas de metros de casa
até à escola como era costume, estranhando a quantidade de pessoas que estava
aglomerada junto do portão principal…
… um reboludo colega de turma, o “Foca”, que andava
quase sempre de fato de treino, veio a correr na minha direcção…
- não há aulas, caraças… – vibrava contente aos saltos
com a mochila – não há água e vão fechar a escola…
…estranhei um pouco porque tinha tomado banho há meia-hora
atrás e em minha casa, obviamente, havia água…
…já na escola, vim a saber que havia uma ruptura grave
numa conduta qualquer ali perto e assim, por decisão do conselho directivo, não
haveria aulas, para alegria geral…
…nesses tempos, os miúdos da nossa idade andavam à
vontade na rua, diferente de hoje, e era aí que nos divertíamos mais, fosse qual fosse a estação do ano… assim,
para quem não ia direito para casa, aquela manhã (inesperadamente livre) iria
ser aproveitada para jogos, passeio e outras brincadeiras…
…a Manuela e eu tínhamos amigos comuns e saímos um
grupo de uma trintena de raparigas e rapazes directos ao Centro Comercial da
Portela (então a grande novidade nos arredores) e que, na época, era um dos
primeiros e o maior do País… (comparando com os que existem agora, dá vontade
de sorrir nostalgicamente…)
…invadimos a pastelaria onde vendiam uns deliciosos
croissants com recheio de chocolate e fomos saindo em pequenos grupos para os
jardins do Seminário dos Olivais, ali próximo, pleno de verdura e recantos de
aventura…
…ela e eu ficámos para trás, a subir uma ladeira no
caminho, enquanto começava a cair uma chuva miudinha…
…eu a equilibrar a minha sacola ao ombro e o croissant
quase a escaldar de tão quente, ainda embrulhado, numa mão… ela, poucos metros
à minha frente, com os livros e o caderno, apertados contra o peito e já a
deliciar-se com o chocolate a desfazer-se na boca…
…olhou para trás na minha direcção enquanto
caminhávamos… soltei um riso infantil…
- que foi ? – perguntou intrigada…
…apontei-lhe para o rosto e passei com o indicador
junto do meu queixo, tentando-lhe fazer entender com o gesto o fio de chocolate
que lhe corria devagar pela cara…
…passou com o dedo mindinho, junto do lado direito dos
lábios…
- do outro lado… - sorri-lhe…
…quando ia fazer o movimento para limpar o local que
lhe indicara, o bolo escorregou-lhe da mão e na tentativa de o agarrar,
estatelou-se na relva húmida do terreno inclinado…
…aproximei-me mais e baixei-me junto dela…
- magoaste-te…?
- não – respondeu, enquanto lhe ajudava a apanhar os
livros e o caderno e ela olhava triste para o croissant, quase inteiro, no chão,
coberto de terra e erva…
…a chuva começou a cair mais intensa e ainda estávamos
algo distantes do nosso destino…
- anda – dei-lhe a mão para a ajudar a levantar –
senão ficamos encharcados…
…apressámos o passo até debaixo de um jovem
pinheiro-manso, um pouco acima…
…pousei a minha sacola e ela colocou as coisas dela
por cima… afastou o cabelo molhado, colado na face… desembrulhei o meu bolo,
tirei metade e estendi-lhe o resto dentro do papel da confeitaria…
…pestanejou, abanando subtilmente a cabeça…
- dividimos…dá prós dois – retorqui…
- obrigado – aceitou, de sorriso envergonhado…
…acercámo-nos mais do tronco rugoso da árvore e também
um do outro, com as gotas de água a cair, como agulhas transparentes, em redor… ambos degustando a guloseima...
- outra vez… - disse-lhe quase me engasgando, tal era
a vontade de rir…
…desta vez acertou logo com o sítio, limpando o
chocolate liquido do canto da boca, com um guardanapo de papel…
- e olha quem fala… – apontou-me para a cara, rindo
também com o olhar…
…tinha terminado a minha metade e estava com os dedos
com restos de chocolate desfeito, fazendo menção de tentar limpar os lábios…
- espera…eu limpo… - aproximou-se ainda mais de mim,
quase lhe sentido a respiração…
…passou o absorvente guardanapo, pelos cantos da minha
boca, eu de olhos fixos nela, ela de olhos fixos nos meus lábios… humedeceu-o
depois com a ponta da língua e limpou devagar o meu queixo…
- tens mais um bocadinho aqui – disse, desta vez olhar
preso no meu…
…a limpeza estava mais que feita, mas ela continuou um
pouco mais a passar o papel por cima do lábio inferior…
…sentíamos o hálito um do outro a misturar-se num
só, tão próximo que estávamos, ela com uma mão encostada no meu peito, eu
encostado contra o tronco do pinheiro e sentindo uma das pernas dela encostada
na minha…
…em poucos segundos que pareceram muito mais
que isso, continuamos a olhar um para o outro, sem dizer nada… ela com o guardanapo, enrolado num dedo,
suspenso junto do meu queixo, eu a engolir em seco…
…hesitantes e em silêncio, aproximámos os lábios entreabertos…um
simples toque primeiro…depois outro, olhos cerrados… sentimos as línguas
tocarem uma na outra, indelevelmente…depois mais um pouco, enroladas pela
primeira vez… senti um suspiro profundo, não sei se dela, se meu, se de ambos…
…e depois, um turbilhão lento de sabor quente e húmido…um
batimento intenso no peito…a mão dela que pousou suave atrás do meu pescoço… a minha
mão acariciando-lhe a face e o lóbulo da
orelha… uma torrente de estrelas cadentes no céu azul escuro duma qualquer noite de ar sereno...
…que sensação maravilhosa… (…e que adoro repetir
sempre na minha vida…)
…o sol conseguiu uma aberta entre as nuvens e incidiu
sobre nós…devagar, descolámos os lábios, abrindo os olhos…encontrei-a de olhar
baixo mas brilhante, sorriso tímido… eu devia estar com um sorriso de orelha a
orelha e também o mais aparvalhado do mundo…
…levantei-lhe o queixo, encarando-a de novo… deu uma
risadinha de menina…afastei-lhe o cabelo que teimava em esconder-lhe o rosto…
sorri-lhe de volta…e voltámos a mergulhar naquela nova descoberta mútua… menos
inibidos agora, instintivamente explorando-nos em carícias…
…acabámos por regressar a casa sem ir ter com o resto
do pessoal da escola… caminhando devagar e com um sentimento cúmplice…parando
de vez em quando, em qualquer lugar possível para nos protegermos da chuva…e
para, repetidamente, voltar de novo a experimentar a novidade do sabor e do
toque um do outro…
…à noite não consegui pegar logo no sono, espírito de
menino inquieto, revivendo tudo na minha cabeça…
…adormeci tarde com um paladar doce de chocolate na
boca…
JP ®