Caro engº. José Sócrates,
Espero que esta o encontre bem. Li com atenção as suas cartas e
foi apenas por falta de tempo que não respondi mais depressa. Lembro-me de, no
fim do liceu, ter mantido alguma correspondência com antigos colegas mas, por
uma razão ou por outra, a troca de cartas foi-se tornando cada vez mais rara,
até que parou completamente. Não gostaria de cometer esse erro outra vez.
Parece-me importante manter o contacto com as pessoas do nosso passado, como
antigos colegas e antigos primeiros-ministros.
Tenho pensado bastante nas observações que vai fazendo. Esta
última carta sensibilizou-me especialmente, na medida em que criticava a
cobardia dos políticos, a cumplicidade dos jornalistas, o cinismo dos
professores de Direito e o desprezo das pessoas decentes. Como creio que sabe,
não pertenço a nenhuma das categorias citadas, e por isso fui deixado de fora
do seu olhar crítico, pelo que lhe agradeço.
As críticas que faz ao funcionamento da justiça parecem-me muito
pertinentes. Portugal precisava que um homem como o sr. estivesse, digamos,
sete anos à frente do Governo, talvez quatro dos quais com maioria absoluta,
para fazer uma reforma séria do sistema judicial. É uma pena não termos essa
possibilidade. Na minha opinião, os primeiros-ministros deviam ser presos
antes, e não depois dos mandatos. Estagiavam durante dois meses numa cadeia,
três num hospital e um semestre numa escola. O contacto directo com a realidade
dá-nos perspectivas novas, mais informadas, e acirra o ímpeto reformista.
Julgo que é possível estabelecer um paralelo entre o processo de
Josef K., a personagem de Kafka, e o de José Sócrates, ou Josef S. - sendo que
a sua história é mais complexa: tanto Josef K. como Josef S. se vêem
confrontados com decisões judiciais autoritárias e, em certos aspectos, até
grotescas, mas Josef K. nunca teve amigos como Alberto Martins e Alberto Costa
a tutelar a justiça, nem governou o seu país. Era apenas vítima. Ser
simultaneamente vítima e carrasco deve ser mais perturbador. Ao contrário do
que muitas vezes se diz, Joseph-Ignace Guillotin, o inventor da guilhotina, não
foi guilhotinado. Essa ironia foi reservada para si, que é agora acusado por um
sistema que ajudou a conceber e conservar.
Compreendo quase todas as suas queixas. Na verdade, a ironia que
identifiquei acima não é a única do seu caso. Ao que parece, o facto de um
amigo lhe ter disponibilizado um apartamento de 225 metros quadrados em Paris
fez com que o Ministério Público lhe disponibilizasse um apartamento de 9
metros quadrados em Évora. Obrigam-no a aceitar aquilo que o acusam de ter
aceitado. É duro. E irónico. Uma pessoa tolera tudo, menos figuras de estilo.
Considero, no entanto, que algumas das suas análises são menos
acertadas. Por exemplo, quando diz, sobre a intenção da prisão preventiva:
"(...) já não és um cidadão face às instituições; és um 'recluso' que
enfrenta as 'autoridades': a tua palavra já não vale o mesmo que a nossa."
Aqui para nós, se lhe roubaram o valor da palavra não terão levado grande
tesouro, uma vez que a sua palavra já não valia o mesmo que a nossa desde
aquela promessa dos 150 mil empregos.
Espero que não leve a mal esta franqueza. Estou certo de que
voltaremos a falar.
Cumprimentos,
Ricardo
(nota do blogger: …no final de
tudo, (quase que aposto que) o homem ainda vai acabar canonizado pelo Vaticano…juntamente
com outros “santos” amigos do peito (Mário Soares, Pinto da Costa, Almeida
Santos, Fernando Gomes, Jorge Coelho, Paulo Campos) que o foram visitar num
lugar – a cadeia – onde também, por outros e diversos motivos, deviam estar ou
ter estado…)
(…e para os mais esquecidos,
lembrar que afirmações como esta, dizem muito o que uma pessoa realmente
é, em termos de moralidade, idoneidade, humanidade e civilidade…)
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