segunda-feira, 4 de maio de 2020

...Quarantine intermission... (part 2)



 “Naquela janela virada para a rua”, por Mário Zambujal

Passaram três semanas sem pôr um pezinho na rua. O abastecimento alimentar chega-me pela amabilidade de dona Hortênsia, a porteira do prédio. Ela vai ao take-away, telefona-me a informar do que há à venda, escolho, não tardará tenho a refeição à porta do apartamento que se entreabre para lhe pagar o devido.

Confesso, ao princípio deste recolhimento, determinado pelo maligno vírus, a situação não me desagradava. Lá fora, a minha vida corria em stress feito de afazeres, contrariedades e fadiga. Dormi sem despertador, instalei-me no sofá, consumi intermináveis horas de televisão, desde o noticiário e os debates sobre a doença até filmes e jogos de futebol de anos distantes em que víamos golos em directo e multidões nas bancadas dos estádios.

Sabia-me bem esse fazer nada. Pena não sacudir um pouco a moleza e praticar algum exercício, o médico tinha-me incitado: “Senhor Eduardo, não prescinda de movimentos físicos, pernas, braços, tronco, mexa-se, meu caro”. Fui dando algumas poucas passeatas pelo corredor mas a alteração maior foi conceder menos tempo ao sofá e à televisão e instalei-me na varanda. É uma varanda pequena, pouco mais de dois metros de largura e uns quatro de comprimento, todavia suficiente para colocar um cadeirão estofado e uma banqueta capaz de estender as pernas. Nesse respiradouro comecei a ler livros adquiridos em tempos sem tempo para grandes leituras.

Distraía-me, porém, a vizinhança. Do meu lugar de observação avistava as casas da rua com moradores à janela. Homens em pijama, mulheres em roupão, de tudo ia vendo, gente diversa refugiada nos domicílios.

A minha primeira curiosidade não se fixou no enfiamento das janelas da rua em frente. Na varanda ao lado da minha, o morador fizera do pequeno espaço um simulacro de ginásio. Para minha vergonha, o homem, ainda jovem, entregava-se a flexões sem conta, torções na zona da cintura, inclusive pinos. Assim todos os dias. As únicas palavras que trocámos foram, por minha iniciativa, de apresentação – “Chamo-me Eduardo e moro aqui”, disse eu e ele correspondeu: “Libério, muito prazer”. De então em diante eu limitava- -me ao “bom dia” e ela retrucava com as mesmas duas palavras a meio do exercício ginástico.

Cansava só de ver. Espraiando o olhar pelas janelas da rua viria a deter-me noutra varanda em que uma mulher regava vasos de flores. Todas as tardes. Mas pela manhã já se deixava ver, num inconfundível robe vermelho e amarelo. Mesmo à distância de uns quarenta metros, dei por certo que possuía um rosto belíssimo e corpo esbelto, atrevo-me mesmo a concluir pela perfeição das pernas, entremostradas quando se reclinava na cadeira de lona desdobrável. Não sou um voyeur, nem mesmo um tipo sensível ao ponto de perder a serenidade na contemplação de uma mulher, por muito que me agrade à vista. O certo, porém, era crescer-me a impaciência quando aquela figura de robe vermelho e amarelo se demorava um pouco a aparecer no meu horizonte.

Na espera, lá ia notando outros vizinhos que se debruçavam para a rua deserta. Entre eles um pertinaz fumador de cachimbo e uma senhora que demoradamente se penteava. Já estranhava quando não os via. A eles e a outros que a nossa reclusão comum retinha em casa.

Hoje, o ginasta da varanda ao lado deve estar em repouso de tantas cambalhotas ou preferiu exercício diferente, acredito que se está a dependurar em alguma trave colocada no interior da residência. Oxalá que a ausência não resulte de alguma lesão muscular, acontece com frequência aos melhores atletas.

Fui à porta recolher o almoço do dia, a dona Hortência trouxe-me arroz de pato e o jornal diário adquirido na tabacaria próxima, ainda bem que não a fecharam. Sento-me no exterior mas a leitura é interrompida por miradas à janela onde costumo ter o gosto de admirar a mulher do robe. Estou sem sorte. Natural é ter-se deslocado ao supermercado ou atreveu- -se a breve passeio para desentorpecer as pernas que presumo lindas. Invejo a destreza do atlético senhor do lado, pensando bem, esse não dispensará correr em toda a volta do quarteirão, em passadas céleres, a esta hora terá percorrido alguns quilómetros, parabéns senhor Libério, fixei o nome dele.

Mais estranha é já a demora da mulher que, sem uma palavra entre nós, tem vindo a seduzir-me. Demasiado tempo para compras no supermercado ou mesmo um passeio em redor. Começo a preocupar-me quando, enfim!, ela sai de dentro para a varanda florida. Respiro fundo… mas logo suspendo a respiração. Ela fala, rindo e gesticulando, com alguém que não posso ver ainda. Vejo-o não tarda e sufoco de espanto. Da casa dela, talvez do quarto dela, sai o ginasta Libério, em calções e tronco nu. Recolho à minha sala e tento distrair-me fazendo zapping na televisão.

 

In “Os contos do Zambujal”, publicado no jornal “Tempo Livre” da Fundação Inatel, edição de Maio/Junho 2020 



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