Passaram três semanas sem pôr
um pezinho na rua. O abastecimento alimentar chega-me pela amabilidade de dona
Hortênsia, a porteira do prédio. Ela vai ao take-away, telefona-me a informar
do que há à venda, escolho, não tardará tenho a refeição à porta do apartamento
que se entreabre para lhe pagar o devido.
Confesso, ao princípio deste
recolhimento, determinado pelo maligno vírus, a situação não me desagradava. Lá
fora, a minha vida corria em stress feito de afazeres, contrariedades e fadiga.
Dormi sem despertador, instalei-me no sofá, consumi intermináveis horas de
televisão, desde o noticiário e os debates sobre a doença até filmes e jogos de
futebol de anos distantes em que víamos golos em directo e multidões nas
bancadas dos estádios.
Sabia-me bem esse fazer nada.
Pena não sacudir um pouco a moleza e praticar algum exercício, o médico
tinha-me incitado: “Senhor Eduardo, não prescinda de movimentos físicos,
pernas, braços, tronco, mexa-se, meu caro”. Fui dando algumas poucas passeatas
pelo corredor mas a alteração maior foi conceder menos tempo ao sofá e à
televisão e instalei-me na varanda. É uma varanda pequena, pouco mais de dois
metros de largura e uns quatro de comprimento, todavia suficiente para colocar
um cadeirão estofado e uma banqueta capaz de estender as pernas. Nesse
respiradouro comecei a ler livros adquiridos em tempos sem tempo para grandes
leituras.
Distraía-me, porém, a
vizinhança. Do meu lugar de observação avistava as casas da rua com moradores à
janela. Homens em pijama, mulheres em roupão, de tudo ia vendo, gente diversa
refugiada nos domicílios.
A minha primeira curiosidade
não se fixou no enfiamento das janelas da rua em frente. Na varanda ao lado da
minha, o morador fizera do pequeno espaço um simulacro de ginásio. Para minha
vergonha, o homem, ainda jovem, entregava-se a flexões sem conta, torções na
zona da cintura, inclusive pinos. Assim todos os dias. As únicas palavras que
trocámos foram, por minha iniciativa, de apresentação – “Chamo-me Eduardo e
moro aqui”, disse eu e ele correspondeu: “Libério, muito prazer”. De então em
diante eu limitava- -me ao “bom dia” e ela retrucava com as mesmas duas
palavras a meio do exercício ginástico.
Cansava só de ver. Espraiando
o olhar pelas janelas da rua viria a deter-me noutra varanda em que uma mulher
regava vasos de flores. Todas as tardes. Mas pela manhã já se deixava ver, num
inconfundível robe vermelho e amarelo. Mesmo à distância de uns quarenta
metros, dei por certo que possuía um rosto belíssimo e corpo esbelto, atrevo-me
mesmo a concluir pela perfeição das pernas, entremostradas quando se reclinava
na cadeira de lona desdobrável. Não sou um voyeur, nem mesmo um tipo sensível
ao ponto de perder a serenidade na contemplação de uma mulher, por muito que me
agrade à vista. O certo, porém, era crescer-me a impaciência quando aquela
figura de robe vermelho e amarelo se demorava um pouco a aparecer no meu
horizonte.
Na espera, lá ia notando
outros vizinhos que se debruçavam para a rua deserta. Entre eles um pertinaz
fumador de cachimbo e uma senhora que demoradamente se penteava. Já estranhava
quando não os via. A eles e a outros que a nossa reclusão comum retinha em
casa.
Hoje, o ginasta da varanda ao
lado deve estar em repouso de tantas cambalhotas ou preferiu exercício
diferente, acredito que se está a dependurar em alguma trave colocada no
interior da residência. Oxalá que a ausência não resulte de alguma lesão
muscular, acontece com frequência aos melhores atletas.
Fui à porta recolher o almoço
do dia, a dona Hortência trouxe-me arroz de pato e o jornal diário adquirido na
tabacaria próxima, ainda bem que não a fecharam. Sento-me no exterior mas a
leitura é interrompida por miradas à janela onde costumo ter o gosto de admirar
a mulher do robe. Estou sem sorte. Natural é ter-se deslocado ao supermercado
ou atreveu- -se a breve passeio para desentorpecer as pernas que presumo
lindas. Invejo a destreza do atlético senhor do lado, pensando bem, esse não
dispensará correr em toda a volta do quarteirão, em passadas céleres, a esta
hora terá percorrido alguns quilómetros, parabéns senhor Libério, fixei o nome
dele.
Mais estranha é já a demora da
mulher que, sem uma palavra entre nós, tem vindo a seduzir-me. Demasiado tempo
para compras no supermercado ou mesmo um passeio em redor. Começo a preocupar-me
quando, enfim!, ela sai de dentro para a varanda florida. Respiro fundo… mas
logo suspendo a respiração. Ela fala, rindo e gesticulando, com alguém que não
posso ver ainda. Vejo-o não tarda e sufoco de espanto. Da casa dela, talvez do
quarto dela, sai o ginasta Libério, em calções e tronco nu. Recolho à minha
sala e tento distrair-me fazendo zapping na televisão.
In “Os contos do Zambujal”, publicado no jornal “Tempo Livre” da Fundação Inatel, edição de Maio/Junho 2020
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