domingo, 7 de fevereiro de 2021

"O pequeno e triste espetáculo da vacinação"

 

 

Editorial de Mafalda Anjos, directora da revista “Visão”, publicado na edição 1457, de 04-02-2021


O pequeno e triste espetáculo da vacinação

 Entre todas as missões fundamentais para o País, há uma mais fundamental do que qualquer outra. Chama-se vacinação contra a Covid-19. A inoculação da população é a única coisa que nos permite pensar no dia a seguir à pandemia. Sabíamos que seria difícil, pela complexa logística que tudo isto acarreta, mas também pela gestão de expectativas e emoções. Estamos, infelizmente, com problemas nas duas frentes.

Importa, antes de mais, enquadrar: a vacinação prossegue, em Portugal, a bom ritmo – estamos entre os países que vacinam mais rapidamente. Com a inoculação dos profissionais de saúde na linha da frente, utentes e pessoal de lares de idosos e unidades de cuidados continuados integrados, ao todo, foram já vacinados cerca de 70 mil portugueses, e tomaram a primeira dose 340 mil. Não é muito, mas é um bom começo.

Agora é que as coisas vão complicar-se. Deixará de ser a vacina a ir até ao cidadão, e passará a ser o cidadão – contactado pelos serviços, como sabemos nem sempre eficientes – a ir até à vacina. E isto muda tudo. Levanta inúmeras questões de como contactar pessoas mais velhas e sem telemóveis, cidadãos sem médico de família, como comprovar as doenças, etc. Entre as pessoas com mais de 80 anos e sem comorbilidades e quem tem mais de 50 e sofra de alguma das quatro doenças identificadas no plano de vacinação (insuficiência cardíaca, doença coronária, insuficiência renal e doença respiratória crónica), serão mais 900 mil portugueses a ser agora vacinados. Grupos fundamentais que precisam da vacina como de pão para a boca para poderem recuperar, pelo menos, parte das suas vidas.

São estas, as pessoas que mais precisam da vacina, as que, provavelmente, mais se indignaram com a sucessão de lamentáveis episódios a que fomos assistindo nos últimos dias. Francisco Ramos, coordenador da task force, chamou-lhes “abusos na vacinação”, desvalorizando tanto o sucedido, como a legítima indignação que suscitaram as mais de uma dezena de histórias que vieram a público. Desde autarcas que, por inerência, têm lugares nas Santas Casas que detêm lares de idosos a administradores e assessores de organismos públicos, a funcionários da restauração, a cônjuges… tivemos de tudo nesta pequena amostra do Portugal dos Pequeninos amorais. A condenação destas pessoas é, sobretudo, ética – e da reprovação social de saber que está a passar à frente de idosos doentes ninguém se livrará –, mas deve ser também criminal, se em causa estiverem abusos de poder ou crimes de peculato. O Ministério Público anunciou que já foram abertos nove inquéritos, e provavelmente mais se seguirão. A ministra da Saúde veio, por cima de Francisco Ramos, na entrevista que deu esta semana à VISÃO, repudiar quaisquer abusos, pedir a criação de uma lista de prioridades suplentes para as sobredoses (que não estava clara) e reforçar a fiscalização e controlo das tomas. Porque, ao contrário do que disse este responsável, não foram apenas os eleitores do Chega os que se indignaram e querem ver consequências. Esta tirada não foi apenas infeliz, foi desmerecedora da importância da função desempenhada (aliás, apenas em part-time, dividida com o cargo de administrador de um hospital privado).

Com ajudas destas, não tenhamos dúvidas de que este tema será, durante largos meses, território de demagogia e populismo. Com milhares de doses a serem ministradas, há milhares de oportunidades de pequena fraude e compadrio. Tal como está também a acontecer lá fora. Embora sejamos manifestamente bons neste campeonato, não temos o exclusivo da chico-espertice. Também em Espanha, na Áustria, nos Estados Unidos e no Reino Unido, vieram a público inúmeros casos de gente que atropelou as prioridades para passar à frente. É o pior da natureza humana a vir ao de cima. No Reino Unido, além disso, é o desperdício que choca: todos os dias são deitadas ao lixo centenas de doses que perdem a validade. Por cá, desperdiçámos também 600 vacinas por problemas na refrigeração. Inaceitável.

Os políticos, diga-se, não têm ajudado à credibilidade e à racionalidade do processo. Primeiro foram incompreensivelmente colocados fora das listas de prioridades todos os titulares de altos cargos públicos, para depois ser incluído um rol enorme de pessoas que mal se conseguem organizar. A lista indicada pela Assembleia da República, com os deputados a vacinar, é bom exemplo disso. Já teve várias versões, e tem encolhido à medida da vontade de parecer bem na fotografia.

Era bom parar para recentrar e manter o foco. Vacinar depressa, sem demagogias, sem atropelos e com critérios claros e bem definidos, que devem ser cumpridos por todos. E em que o único privilégio deve ser apenas o da maior necessidade.

 

***

...artigo pertinente e que "assino por baixo"...
...infelizmente é uma situação que não me surpreende... 
...a "chico-espertice" dos portugueses, principalmente dos que mais tem poder para aplicá-la em seu proveito, já é um fado antigo... 
...se no inicio de toda esta fase horrivel que atravessamos, ainda acreditava (embora com uma ténue esperança) no bom-senso e solidariedade da maioria das pessoas, depressa esse sentimento me abandonou... uma desilusão total... e, de facto, nada vai ser como dantes como tanto se proprala...
...dos políticos, nada de bom ou acertado esperava, mas isso também é mais do mesmo, mas o nível de egoísmo e irresponsabilidade do povo em geral é confrangedor... 
...a juntar a isto, ter governantes e pessoas em lugares de decisão que parecem desligados da realidade e reagem aos diversos desenvolvimentos da pandemia, mais por reacção do que acção e, mais importante, planificação atempada e criteriosa...acabamos por ficar entregues a nós próprios...
...apesar de tudo, cada um que tenha, por si, ânimo, preserverança, consciência e vontade de manter a sua sua saúde e a de outros... 
...e como dizia o Raul Sonaldo, "façam o favor de ser felizes"...



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