Editorial de Mafalda Anjos, directora da revista “Visão”, publicado na edição 1457, de 04-02-2021
O pequeno e triste espetáculo da vacinação
Importa, antes de mais, enquadrar: a vacinação prossegue, em Portugal, a bom
ritmo – estamos entre os países que vacinam mais rapidamente. Com a inoculação
dos profissionais de saúde na linha da frente, utentes e pessoal de lares de
idosos e unidades de cuidados continuados integrados, ao todo, foram já
vacinados cerca de 70 mil portugueses, e tomaram a primeira dose 340 mil. Não é
muito, mas é um bom começo.
Agora é que as coisas vão complicar-se.
Deixará de ser a vacina a ir até ao cidadão, e passará a ser o cidadão –
contactado pelos serviços, como sabemos nem sempre eficientes – a ir até à
vacina. E isto muda tudo. Levanta inúmeras questões de como contactar pessoas
mais velhas e sem telemóveis, cidadãos sem médico de família, como comprovar as
doenças, etc. Entre as pessoas com mais de 80 anos e sem comorbilidades e quem
tem mais de 50 e sofra de alguma das quatro doenças identificadas no plano de
vacinação (insuficiência cardíaca, doença coronária, insuficiência renal e
doença respiratória crónica), serão mais 900 mil portugueses a ser agora
vacinados. Grupos fundamentais que precisam da vacina como de pão para a boca
para poderem recuperar, pelo menos, parte das suas vidas.
São estas, as pessoas que mais precisam
da vacina, as que, provavelmente, mais se indignaram com a sucessão de
lamentáveis episódios a que fomos assistindo nos últimos dias. Francisco Ramos,
coordenador da task force, chamou-lhes “abusos na vacinação”, desvalorizando
tanto o sucedido, como a legítima indignação que suscitaram as mais de uma
dezena de histórias que vieram a público. Desde autarcas que, por inerência,
têm lugares nas Santas Casas que detêm lares de idosos a administradores e
assessores de organismos públicos, a funcionários da restauração, a cônjuges…
tivemos de tudo nesta pequena amostra do Portugal dos Pequeninos amorais. A
condenação destas pessoas é, sobretudo, ética – e da reprovação social de saber
que está a passar à frente de idosos doentes ninguém se livrará –, mas deve ser
também criminal, se em causa estiverem abusos de poder ou crimes de peculato. O
Ministério Público anunciou que já foram abertos nove inquéritos, e
provavelmente mais se seguirão. A ministra da Saúde veio, por cima de Francisco
Ramos, na entrevista que deu esta semana à VISÃO, repudiar quaisquer abusos,
pedir a criação de uma lista de prioridades suplentes para as sobredoses (que
não estava clara) e reforçar a fiscalização e controlo das tomas. Porque, ao
contrário do que disse este responsável, não foram apenas os eleitores do Chega
os que se indignaram e querem ver consequências. Esta tirada não foi apenas
infeliz, foi desmerecedora da importância da função desempenhada (aliás, apenas
em part-time, dividida com o cargo de administrador de um hospital privado).
Com ajudas destas, não tenhamos dúvidas
de que este tema será, durante largos meses, território de demagogia e
populismo. Com milhares de doses a serem ministradas, há milhares de
oportunidades de pequena fraude e compadrio. Tal como está também a acontecer
lá fora. Embora sejamos manifestamente bons neste campeonato, não temos o
exclusivo da chico-espertice. Também em Espanha, na Áustria, nos Estados Unidos
e no Reino Unido, vieram a público inúmeros casos de gente que atropelou as
prioridades para passar à frente. É o pior da natureza humana a vir ao de cima.
No Reino Unido, além disso, é o desperdício que choca: todos os dias são
deitadas ao lixo centenas de doses que perdem a validade. Por cá, desperdiçámos
também 600 vacinas por problemas na refrigeração. Inaceitável.
Os políticos, diga-se, não têm ajudado à
credibilidade e à racionalidade do processo. Primeiro foram
incompreensivelmente colocados fora das listas de prioridades todos os
titulares de altos cargos públicos, para depois ser incluído um rol enorme de
pessoas que mal se conseguem organizar. A lista indicada pela Assembleia da
República, com os deputados a vacinar, é bom exemplo disso. Já teve várias
versões, e tem encolhido à medida da vontade de parecer bem na fotografia.
Era bom parar para recentrar e manter o
foco. Vacinar depressa, sem demagogias, sem atropelos e com critérios claros e
bem definidos, que devem ser cumpridos por todos. E em que o único privilégio
deve ser apenas o da maior necessidade.
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