segunda-feira, 1 de abril de 2013

Memórias do século passado IV – …o meu primeiro beijo (…Manuela I.)


…castanho… é a cor que associo ao meu primeiro beijo…

…ao meu “verdadeiro” primeiro beijo (“french kiss” ou beijo de língua), já que as beijocas na face ou de fugida nos lábios, em namoros envergonhados de infância não os posso considerar como tal… 

…castanho dourado das folhas do Outono que terminava, dos cor dos olhos e dos tons do cabelo dela…

…e castanho escuro da cor do chocolate…

…teríamos ela e eu, 11/12 anos… andávamos na mesma escola, mas não na mesma turma… morávamos no mesmo bairro, relativamente perto um do outro, embora só nos tivéssemos cruzado e falado um com o outro nos corredores ou no pátio, no intervalo ou, uma por outra vez, à saída no fim das aulas…

…Manuela era uma miúda gira, de olhar vivo, cabelos longos até pouco abaixo dos ombros e com um tom moreno de pele…

…nesse dia de manhã, de sol a prometer Primavera embora com uma brisa fresquinha no ar, fiz as poucas centenas de metros de casa até à escola como era costume, estranhando a quantidade de pessoas que estava aglomerada junto do portão principal…

… um reboludo colega de turma, o “Foca”, que andava quase sempre de fato de treino, veio a correr na minha direcção…

- não há aulas, caraças… – vibrava contente aos saltos com a mochila – não há água e vão fechar a escola…

…estranhei um pouco porque tinha tomado banho há meia-hora atrás e em minha casa, obviamente, havia água…

…já na escola, vim a saber que havia uma ruptura grave numa conduta qualquer ali perto e assim, por decisão do conselho directivo, não haveria aulas, para alegria geral…

…nesses tempos, os miúdos da nossa idade andavam à vontade na rua, diferente de hoje, e era aí que nos divertíamos mais, fosse qual fosse a estação do ano… assim, para quem não ia direito para casa, aquela manhã (inesperadamente livre) iria ser aproveitada para jogos, passeio e outras brincadeiras…

…a Manuela e eu tínhamos amigos comuns e saímos um grupo de uma trintena de raparigas e rapazes directos ao Centro Comercial da Portela (então a grande novidade nos arredores) e que, na época, era um dos primeiros e o maior do País… (comparando com os que existem agora, dá vontade de sorrir nostalgicamente…) 

…invadimos a pastelaria onde vendiam uns deliciosos croissants com recheio de chocolate e fomos saindo em pequenos grupos para os jardins do Seminário dos Olivais, ali próximo, pleno de verdura e recantos de aventura…

…ela e eu ficámos para trás, a subir uma ladeira no caminho, enquanto começava a cair uma chuva miudinha…

…eu a equilibrar a minha sacola ao ombro e o croissant quase a escaldar de tão quente, ainda embrulhado, numa mão… ela, poucos metros à minha frente, com os livros e o caderno, apertados contra o peito e já a deliciar-se com o chocolate a desfazer-se na boca…

…olhou para trás na minha direcção enquanto caminhávamos… soltei um riso infantil…

- que foi ? – perguntou intrigada…

…apontei-lhe para o rosto e passei com o indicador junto do meu queixo, tentando-lhe fazer entender com o gesto o fio de chocolate que lhe corria devagar pela cara…

…passou com o dedo mindinho, junto do lado direito dos lábios…

- do outro lado… - sorri-lhe…

…quando ia fazer o movimento para limpar o local que lhe indicara, o bolo escorregou-lhe da mão e na tentativa de o agarrar, estatelou-se na relva húmida do terreno inclinado…     

…aproximei-me mais e baixei-me junto dela…

- magoaste-te…?

- não – respondeu, enquanto lhe ajudava a apanhar os livros e o caderno e ela olhava triste para o croissant, quase inteiro, no chão, coberto de terra e erva…

…a chuva começou a cair mais intensa e ainda estávamos algo distantes do nosso destino…

- anda – dei-lhe a mão para a ajudar a levantar – senão ficamos encharcados…

…apressámos o passo até debaixo de um jovem pinheiro-manso, um pouco acima…

…pousei a minha sacola e ela colocou as coisas dela por cima… afastou o cabelo molhado, colado na face… desembrulhei o meu bolo, tirei metade e estendi-lhe o resto dentro do papel da confeitaria…

…pestanejou, abanando subtilmente a cabeça…

- dividimos…dá prós dois – retorqui…

- obrigado – aceitou, de sorriso envergonhado…

…acercámo-nos mais do tronco rugoso da árvore e também um do outro, com as gotas de água a cair, como agulhas transparentes, em redor… ambos degustando a guloseima...

- outra vez… - disse-lhe quase me engasgando, tal era a vontade de rir…

…desta vez acertou logo com o sítio, limpando o chocolate liquido do canto da boca, com um guardanapo de papel…

- e olha quem fala… – apontou-me para a cara, rindo também com o olhar…

…tinha terminado a minha metade e estava com os dedos com restos de chocolate desfeito, fazendo menção de tentar limpar os lábios…

- espera…eu limpo… - aproximou-se ainda mais de mim, quase lhe sentido a respiração…

…passou o absorvente guardanapo, pelos cantos da minha boca, eu de olhos fixos nela, ela de olhos fixos nos meus lábios… humedeceu-o depois com a ponta da língua e limpou devagar o meu queixo…

- tens mais um bocadinho aqui – disse, desta vez olhar preso no meu…

…a limpeza estava mais que feita, mas ela continuou um pouco mais a passar o papel por cima do lábio inferior…

…sentíamos o hálito um do outro a misturar-se num só, tão próximo que estávamos, ela com uma mão encostada no meu peito, eu encostado contra o tronco do pinheiro e sentindo uma das pernas dela encostada na minha…

…em poucos segundos que pareceram muito mais que isso, continuamos a olhar um para o outro, sem dizer nada…  ela com o guardanapo, enrolado num dedo, suspenso junto do meu queixo, eu a engolir em seco…

…hesitantes e em silêncio, aproximámos os lábios entreabertos…um simples toque primeiro…depois outro, olhos cerrados… sentimos as línguas tocarem uma na outra, indelevelmente…depois mais um pouco, enroladas pela primeira vez… senti um suspiro profundo, não sei se dela, se meu, se de ambos…

…e depois, um turbilhão lento de sabor quente e húmido…um batimento intenso no peito…a mão dela que pousou suave atrás do meu pescoço… a minha mão acariciando-lhe a face  e o lóbulo da orelha… uma torrente de estrelas cadentes no céu azul escuro duma qualquer noite de ar sereno...

…que sensação maravilhosa… (…e que adoro repetir sempre na minha vida…)

…o sol conseguiu uma aberta entre as nuvens e incidiu sobre nós…devagar, descolámos os lábios, abrindo os olhos…encontrei-a de olhar baixo mas brilhante, sorriso tímido… eu devia estar com um sorriso de orelha a orelha e também o mais aparvalhado do mundo…

…levantei-lhe o queixo, encarando-a de novo… deu uma risadinha de menina…afastei-lhe o cabelo que teimava em esconder-lhe o rosto… sorri-lhe de volta…e voltámos a mergulhar naquela nova descoberta mútua… menos inibidos agora, instintivamente explorando-nos em carícias…           

…acabámos por regressar a casa sem ir ter com o resto do pessoal da escola… caminhando devagar e com um sentimento cúmplice…parando de vez em quando, em qualquer lugar possível para nos protegermos da chuva…e para, repetidamente, voltar de novo a experimentar a novidade do sabor e do toque um do outro…

…à noite não consegui pegar logo no sono, espírito de menino inquieto, revivendo tudo na minha cabeça…

…adormeci tarde com um paladar doce de chocolate na boca…     


JP ®

Sem comentários:

Enviar um comentário