Crónica de João Miguel Tavares
Ivo Rosa não livrou Sócrates. Livrou o sistema que o criou
Em vez de testa de ferro, Santos Silva passou
a ser o bode expiatório do processo, com Salgado, Bava, Granadeiro, Vara ou
Bataglia a saírem de mansinho. Esse é o grande escândalo.
A decisão do juiz Ivo Rosa teve esta
originalidade: matou a Operação Marquês e matou José Sócrates. Se a sua
primeira tentação, caro leitor, for achar que Ivo Rosa ilibou o antigo
primeiro-ministro, pare um bocadinho e pense outra vez. Não é verdade. Ao
manter três crimes de branqueamento de capitais, mais três crimes de
falsificação de documento, e considerando a fundamentação a que recorreu para
sustentar tais crimes, Ivo Rosa sustentou a existência de indícios mais do que
suficientes para acreditar que Sócrates recebeu de forma ilegítima 1,7 milhões
de euros de Carlos Santos Silva.
Isto é a confirmação da sua morte política. A
pena máxima por branqueamento de capitais é de 12 anos. A de corrupção passiva
é de oito. Se for condenado, Sócrates poderá passar muito tempo na prisão.
Ainda por cima, Ivo Rosa justificou a manutenção dos três crimes de
branqueamento de capitais com a existência de um crime precedente, embora prescrito:
corrupção passiva sem demonstração de acto concreto. Ou seja, a tese de Ivo
Rosa é esta: Carlos Santos Silva corrompeu José Sócrates enquanto ele era
primeiro-ministro, e José Sócrates deixou-se corromper. O juiz falou em “venda
da disponibilidade” por parte do ex-primeiro-ministro, subscrevendo (coisa
rara) uma expressão utilizado pelo Ministério Público (MP): “compra da
personalidade”. São palavras assassinas.
Sócrates saiu do Campus da Justiça a simular
uma vitória que não obteve. Um juiz – ainda por cima alguém que ele tanto
elogiou – acusou-o de ter sido corrompido. Claro que a tese de Ivo Rosa é
extraordinária para quem tenha ouvido as escutas do processo. O pobre Carlos
Santos Silva, tratado a pontapé nas escutas da Operação Marquês, que Sócrates
tratava como se fosse seu capacho, transformou-se agora em pujante corruptor,
perdendo aos olhos da decisão de Ivo Rosa o estatuto de testa de ferro – coisa
que obviamente era. Em vez de testa de ferro, Santos Silva passou a ser o bode
expiatório do processo, com Salgado, Bava, Granadeiro, Vara ou Bataglia a
saírem de mansinho.
Esse é o grande escândalo. E é por isso que
centrar apenas os holofotes em Sócrates é um erro enorme. Ivo Rosa não salvou
José Sócrates. Salvou o sistema que o alimentou e que ele próprio promoveu.
Aquilo que se eclipsou não foram as suspeitas que recaíam sobre a figura de
proa do processo – foi toda a arquitectura de corrupção que o MP reconstruiu
para justificar os 34 milhões de euros que passaram pelas contas de Carlos
Santos Silva. Foi um segundo arquivamento do atentado ao Estado de Direito.
Todo o circuito do dinheiro, tudo o que se descobriu nos Panama Papers, toda a
colaboração das autoridades suíças; tudo isso o juiz transformou numa bolinha
de papel e atirou para o caixote do lixo.
Só que Ivo Rosa tem um problema: falou demais
para o seu próprio bem. Se ele se tivesse atido a questões formais, derrubando
a acusação através da contestação dos prazos do MP, com o argumento de que
estava tudo prescrito, a discussão era apenas jurídica, e ficávamos com o
retrato do juiz obcecado com os direitos e garantias dos arguidos, e com uma
leitura muito estrita da lei. Infelizmente, Ivo Rosa fez mais: desvalorizou
provas, sobrevalorizou testemunhas da defesa, exibiu uma total ignorância sobre
os mecanismos de decisão política, e demonstrou que na sua peculiar concepção
do Direito é mais fácil um camelo passar por um buraco de uma agulha do que um
corrupto ser condenado em Portugal.
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