terça-feira, 13 de abril de 2021

“Ivo Rosa não livrou Sócrates. Livrou o sistema que o criou.”

 Crónica de João Miguel Tavares, 9 de Abril de 2021, in Jornal “Público”

Ivo Rosa não livrou Sócrates. Livrou o sistema que o criou.

Em vez de testa de ferro, Santos Silva passou a ser o bode expiatório do processo, com Salgado, Bava, Granadeiro, Vara ou Bataglia a saírem de mansinho. Esse é o grande escândalo. 

A decisão do juiz Ivo Rosa teve esta originalidade: matou a Operação Marquês e matou José Sócrates. Se a sua primeira tentação, caro leitor, for achar que Ivo Rosa ilibou o antigo primeiro-ministro, pare um bocadinho e pense outra vez. Não é verdade. Ao manter três crimes de branqueamento de capitais, mais três crimes de falsificação de documento, e considerando a fundamentação a que recorreu para sustentar tais crimes, Ivo Rosa sustentou a existência de indícios mais do que suficientes para acreditar que Sócrates recebeu de forma ilegítima 1,7 milhões de euros de Carlos Santos Silva.

Isto é a confirmação da sua morte política. A pena máxima por branqueamento de capitais é de 12 anos. A de corrupção passiva é de oito. Se for condenado, Sócrates poderá passar muito tempo na prisão. Ainda por cima, Ivo Rosa justificou a manutenção dos três crimes de branqueamento de capitais com a existência de um crime precedente, embora prescrito: corrupção passiva sem demonstração de acto concreto. Ou seja, a tese de Ivo Rosa é esta: Carlos Santos Silva corrompeu José Sócrates enquanto ele era primeiro-ministro, e José Sócrates deixou-se corromper. O juiz falou em “venda da disponibilidade” por parte do ex-primeiro-ministro, subscrevendo (coisa rara) uma expressão utilizado pelo Ministério Público (MP): “compra da personalidade”. São palavras assassinas.

Sócrates saiu do Campus da Justiça a simular uma vitória que não obteve. Um juiz – ainda por cima alguém que ele tanto elogiou – acusou-o de ter sido corrompido. Claro que a tese de Ivo Rosa é extraordinária para quem tenha ouvido as escutas do processo. O pobre Carlos Santos Silva, tratado a pontapé nas escutas da Operação Marquês, que Sócrates tratava como se fosse seu capacho, transformou-se agora em pujante corruptor, perdendo aos olhos da decisão de Ivo Rosa o estatuto de testa de ferro – coisa que obviamente era. Em vez de testa de ferro, Santos Silva passou a ser o bode expiatório do processo, com Salgado, Bava, Granadeiro, Vara ou Bataglia a saírem de mansinho.

Esse é o grande escândalo. E é por isso que centrar apenas os holofotes em Sócrates é um erro enorme. Ivo Rosa não salvou José Sócrates. Salvou o sistema que o alimentou e que ele próprio promoveu. Aquilo que se eclipsou não foram as suspeitas que recaíam sobre a figura de proa do processo – foi toda a arquitectura de corrupção que o MP reconstruiu para justificar os 34 milhões de euros que passaram pelas contas de Carlos Santos Silva. Foi um segundo arquivamento do atentado ao Estado de Direito. Todo o circuito do dinheiro, tudo o que se descobriu nos Panama Papers, toda a colaboração das autoridades suíças; tudo isso o juiz transformou numa bolinha de papel e atirou para o caixote do lixo.

Só que Ivo Rosa tem um problema: falou demais para o seu próprio bem. Se ele se tivesse atido a questões formais, derrubando a acusação através da contestação dos prazos do MP, com o argumento de que estava tudo prescrito, a discussão era apenas jurídica, e ficávamos com o retrato do juiz obcecado com os direitos e garantias dos arguidos, e com uma leitura muito estrita da lei. Infelizmente, Ivo Rosa fez mais: desvalorizou provas, sobrevalorizou testemunhas da defesa, exibiu uma total ignorância sobre os mecanismos de decisão política, e demonstrou que na sua peculiar concepção do Direito é mais fácil um camelo passar por um buraco de uma agulha do que um corrupto ser condenado em Portugal.


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