domingo, 24 de novembro de 2019

...José Mário Branco (...in memoriam...)

José Mário Branco
(Porto, 25-05-1942 - Lisboa, 19-11-2019) 

JP ®

''A cantiga é uma arma''
José Mário Branco (c/ GAC-Grupo de Acção Cultural)

a cantiga é uma arma
eu não sabia
tudo depende da bala
e da pontaria
tudo depende da raiva
e da alegria
a cantiga é uma arma
de pontaria

há canta por interesse
há quem cante por cantar
há quem faça profissão
de combater a cantar
e há quem cante de pantufas
para não perder o lugar

a cantiga é uma arma
eu não sabia
tudo depende da bala
e da pontaria
tudo depende da raiva
e da alegria
a cantiga é uma arma
de pontaria

O faduncho choradinho
de tabernas e salões
semeia só desalento
misticismo e ilusões
canto mole em letra dura
nunca fez revoluções

a cantiga é uma arma
Contra a burguesia
tudo depende da bala
e da pontaria
tudo depende da raiva
e da alegria
a cantiga é uma arma
de pontaria

Se tu cantas a reboque
não vale a pena cantar
se vais à frente demais
bem te podes engasgar
a cantiga só é arma
quando a luta acompanhar

a cantiga é uma arma
eu não sabia
tudo depende da bala
e da pontaria
tudo depende da raiva
e da alegria
a cantiga é uma arma
de pontaria

Uma arma eficiente
fabricada com cuidado
deve ter um mecanismo
bem perfeito e oleado
e o canto com uma arma
deve ser bem fabricado

a cantiga é uma arma
Contra a burguesia
tudo depende da bala
e da pontaria
tudo depende da raiva
e da alegria
a cantiga é uma arma
de pontaria

''A cantiga é uma arma'' - José Mário Branco (c/ GAC-Grupo de Acção Cultural)
Composição – José Mário Branco


JP ®
''Eu vim de longe, eu vou para longe''
José Mário Branco
Quando o avião aqui chegou
Quando o mês de maio começou
Eu olhei para ti
Então entendi
Foi um sonho mau que já passou
Foi um mau bocado que acabou

Tinha esta viola numa mão
Uma flor vermelha na outra mão
Tinha um grande amor
Marcado pela dor
E quando a fronteira me abraçou
Foi esta bagagem que encontrou

Eu vim de longe
De muito longe
O que eu andei p’ra aqui chegar
Eu vou p’ra longe
P’ra muito longe
Onde nos vamos encontrar
Com o que temos p’ra nos dar

E então olhei à minha volta
Vi tanta esperança andar à solta
Que não hesitei
E os hinos cantei
Foram feitos do meu coração
Feitos de alegria e de paixão

Quando a nossa festa se estragou
E o mês de Novembro se vingou
Eu olhei pra ti
E então entendi
Foi um sonho lindo que acabou
Houve aqui alguém que se enganou

Tinha esta viola numa mão
Coisas começadas noutra mão
Tinha um grande amor
Marcado pela dor
E quando a espingarda se virou
Foi pra esta força que apontou

E então olhei à minha volta
Vi tanta mentira andar à solta
Que me perguntei
Se os hinos que cantei
Eram só promessas e ilusões
Que nunca passaram de canções

Eu vim de longe
De muito longe
O que eu andei pra aqui chegar
Eu vou p’ra longe
P’ra muito longe
Onde nos vamos encontrar
Com o que temos p’ra nos dar

Quando eu finalmente eu quis saber
Se ainda vale a pena tanto crer
Eu olhei para ti
Então eu entendi
É um lindo sonho para viver
Quando toda a gente assim quiser

Tenho esta viola numa mão
Tenho a minha vida noutra mão
Tenho um grande amor
Marcado pela dor
E sempre que Abril aqui passar
Dou-lhe este farnel para o ajudar

Eu vim de longe
De muito longe
O que eu andei p’ra aqui chegar
Eu vou p’ra longe
P’ra muito longe
Onde nos vamos encontrar
Com o que temos p’ra nos dar

E agora eu olho à minha volta
Vejo tanta raiva andar a solta
Que já não hesito
Os hinos que repito
São a parte que eu posso prever
Do que a minha gente vai fazer

Eu vim de longe
De muito longe
O que eu andei p’ra aqui chegar
Eu vou p’ra longe
P’ra muito longe
Onde nos vamos encontrar
Com o que temos p’ra nos dar

''Eu vim de longe, eu vou para longe'' - José Mário Branco
Composição – José Mário Branco

JP ®
''Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades''
José Mário Branco

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
E se tudo o mundo é composto de mudança,
Troquemo-lhes as voltas que ainda o dia é uma criança.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.
Mas se tudo o mundo é composto de mudança,
Troquemo-lhes as voltas que ainda o dia é uma criança.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
Mas se tudo o mundo é composto de mudança,
Troquemo-lhes as voltas que ainda o dia é uma criança.
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.
Mas se tudo o mundo é composto de mudança,
Troquemo-lhes as voltas que ainda o dia é uma criança.

''Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades'' - José Mário Branco
Letra – José Mário Branco / Luis Vaz de Camões
Música – Jean Sommer


  
(Artigo de Gonçalo Palma, em 19-11-2019, in Rádio Comercial on-line)

Zé Mário, o homem fora do sistema
José Mário Branco (1942-2019) fez de tudo: compositor, cantor, letrista, produtor, arranjador. Procurou melhorar tudo em sua volta. E conseguiu.

"Pequeno-burguês do Porto, filho de professores primários e artista de variedades", assim se definia José Mário Branco.

A infância de José Mário Branco é passada na vila piscatória de Leça da Palmeira, e a adolescência é vivida no Porto, onde ganha maturidade cultural.

Oriundo de família católica, largou a igreja e inscreveu-se no Partido Comunista Português aos 17 anos, farto que estava do regime salazarista.
 

Mais tarde, foge da Guerra Colonial e exila-se em Paris a partir de 1963, onde trabalhou como operário fabril. Só alguns anos mais tarde, o seu activismo político se torna cultural e musical, passando a tocar em várias associações portuguesas em Paris.

É de Paris que se ouve os sons da famosa estação de comboios da chegada dos portugueses no Sud-Express, a Gare D' Austerlitz, na faixa de abertura do álbum de estreia "Mudam-se Os Tempos, Mudam-se as Vontades", de 1971.
O disco, gravado em França, contava não só com poemas de Camões, Alexandre O’ Neill e Natália Correia, bem como de letras de outro exilado em Paris, Sérgio Godinho. Neste primeiro álbum, José Mário Branco assumia já uma posição que já lhe era querida: a de director musical, o homem que coordenava tudo
1971 não é só o ano do álbum de estreia de José Mário Branco, "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades". É também em 1971 que José Mário Branco produz e dirige os arranjos do álbum de José Afonso, "Cantigas do Maio". 
 
Nesse disco histórico de Zeca, José Mário Branco teve a ideia luminosa de gravar a marcha de 'Grândola Vila Morena', num chão de gravilha à saída do estúdio francês.  
Quando em 1972, José Mário Branco grava o segundo álbum, "Margem de Certa Maneira", o músico já tem muito mais experiência de estúdio que no disco de estreia, "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades".
 
Mas há vários pontos de contacto entre os dois discos. "Margem de Certa Maneira" é também gravado no período de exílio em Paris, com músicos franceses, alguns coros da sua mulher Isabel e letras do companheiro de luta Sérgio Godinho.
 
Há também um olhar para o emigrante português em terras gaulesas, na canção 'Por Terras de França'. 
Vem depois o 25 de Abril de 1974 que significa para José Mário Branco o fim do exílio em Paris e o regresso a Portugal 11 anos depois.

Mal aterra em Lisboa, junta-se a outros cantores de intervenção e cria com Fausto, entre outros, o Grupo de Acção Cultural, na própria noite. 
Nestes primeiros tempos da democracia, as suas canções tornam-se mais políticas e directas, inspiradas em algumas greves, sem metáforas envolvidas.


Mas com o golpe de 25 de Novembro de 1975 comandado por Ramalho Eanes, terminou o período revolucionário. José Mário Branco é mais tarde expulso do Partido Comunista Português e decide dedicar-se ao teatro no grupo da Comuna, onde fazia parte a atriz e sua futura mulher Manuela de Freitas.  
A primeira peça que José Mário Branco dirigiu musicalmente para a Comuna foi "A Mãe" de Bertolt Brecht, que mereceria um álbum, gravado com a vozes de todo o elenco do grupo de teatro do tal Casarão Rosa da Praça de Espanha, em Lisboa.
Numa noite de Fevereiro de 1979, José Mário Branco, 37 anos, tem o rasgo de inspiração para o tema 'FMI', uma canção que se torna um desabafo enlouquecido, um grito de basta contra o estado do país, num diálogo catártico com ele próprio e com a sua geração.
FMI foi publicado em maxi-single em 1982. 
O seu desencanto com o país também encontra outra canção, 'Eu Vim de Longe, Eu Vou p'ra Longe'. Essa música de José Mário Branco é bem autobiográfica e lamenta o "sonho lindo que acabou", enquanto bate num bombo ao estilo do folclore nortenho. 
'Eu Vim de Longe, Eu Vou p'ra Longe' faz parte do álbum de 1982, "Ser Solidário", que provém de um espectáculo ao vivo de 1980 e 81 com o mesmo nome. 'Eu Vim de Longe, Eu Vou p'ra Longe' é a alma inquieta de José Mário Branco nos seus pesadelos e sonhos.
Foi nesse espectáculo que José Mário Branco obteve o financiamento para a gravação do álbum, pré-vendido meses antes aos espectadores da peça de teatro, no que chamaríamos hoje de crowdfunding, mas sem internet, só com cupões.

O espectáculo foi um sucesso de bilheteira, sempre com lotação esgotada, no Teatro Aberto, em Lisboa, na Praça de Espanha, quase de frente para a Comuna onde José Mário Branco e a mulher e actriz Manuela de Freitas já não trabalhavam.
Nos tempos do exílio em França, José Mário Branco era um forte crítico do fado para quem só "semeava desalento, misticismo e ilusões", tal como o diz na sua música 'A Cantiga É uma Arma'.

Com a influência da sua companheira Manuela de Freitas, grande fã de fado, o que era uma embirração de José Mário Branco passou a ser uma das suas grandes paixões e acções.
 
Aos poucos, foi compondo fados. E tornou-se o director musical do fadista Camané, tendo já trabalhado também com outras figuras, como Carlos do Carmo ou Katia Guerreiro. 

Numa coisa José Mário Branco manteve-se igual: o seu activismo político continuou, às vezes na rua, contra a ocupação do Iraque pelos Estados Unidos, associando-se a campanhas partidárias ou dinamizando até um jornal de esquerda como o Mudar de Vida.
José Mário Branco parece ter encerrado a sua discografia em nome próprio com o álbum de 2004, "Resistir É Vencer".
O penúltimo álbum de originais data já de 1990. "Correspondências" é como, avisa o título, um disco de cartas, de cartaz abertas, às mais variadas pessoas, sejam do passado, como Jesus Cristo ou Anton Tchekhov, ou do futuro, como os seus netos.
Há também correspondência ao seu mestre que jamais esqueceu, Zeca – Carta a José Afonso.
José Mário Branco, Zé Mário para os próximos, "pequeno-burguês do Porto, filho de professores primários e artista de variedades", tinha 77 anos de idade e deixou-nos hoje.

(Artigo de Gonçalo Palma, em 19-11-2019, in Rádio Comercial on-line)



José Mário Branco, por Vasco Gargalo





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