quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

…dormência sonâmbula…



“Teardrop” – Massive Attack ft. Elizabeth Fraser

…07:00 da manhã…

…a estridência do alarme irrompe nos ouvidos…

…um toque no snooze e mais 10 minutos para despertar…

(…)

…07:10…

…a mesma sinfonia penetrante enche de novo o silêncio do quarto…

…nova pancada no telemóvel… mais 10 minutos…

(…)

…meia-hora depois, os olhos abertos, fixados na janela por onde entra a luz matinal…

…não ouvistes o terceiro aviso de alarme e ergueste da cama, já com o dia (a vida) atrasado(a)…

…no quarto de banho, encaras o tipo que se reflecte no espelho…

…reconheces o rosto, aliás, ninguém o conhece melhor do que tu…

…os olhos estremunhados que já conheceram maior brilho, as rugas que muita gente nem nota mas que tu sabes onde vão surgindo, o cabelo que cedo mas lentamente começou a ficar grisalho…

…passas a mão direita pelo rosto… 4ª feira e a barba nem está muito grande… pelos menos para ti…

…passa à frente, desfaze-la amanhã… depois de amanhã…ou na 2ª feira…

…o duche matinal…

…a água morna a cair-te no corpo que sentes cada vez mais magro, enquanto te ensaboas…

…encostado de mãos apoiadas na parede, aprecias o dilúvio que se descarrega sobre ti, na confortante escuridão que provocaste cerrando os olhos (primeiro momento de desligamento do mundo nesse dia)

…despertas no novo e já passaram mais uns minutos…

…secar, vestir, um ouvido e meio-olho na tv para ver o que se passa no mundo…

…pequeno-almoço rápido e frugal… yogurte liquido, fruta às vezes e uma caneca de café preto…

…miras o termómetro da janela da cozinha… 16º graus cá dentro e 9º graus lá fora… sol nada, nuvens muitas e ameaça de chuva…

…botas calçadas, casaco grosso a proteger-te o tronco, ronda à casa para ver se ficou tudo bem, toques nos bolsos para certificar que nada fica para trás e porta fora…

…duas voltas na fechadura, o elevador abre as portas e desces para continuares a rotina quotidiana…

… headphones colocados e desligas-te um pouco de tudo…

…passadas cadenciadas até chegar à paragem do autocarro... uma cacimba miudinha começa a cair, assim que acendes o primeiro cigarro do dia… …puxas o capuz para te cobrir a cabeça e resguardas o livro debaixo do aconchego do casaco… 

…a espera habitual e depois cinco minutos de caminho, aos tombos pelas curvas do caminho, dentro do transporte cheio de povo, até chegares à estação de metro…

…uma olhadela de esguelha no relógio digital, no átrio de entrada …09:12…é incrível como o tempo passa rápido a estas horas da manhã…ou então é mais a tua velocidade que é lenta…cada vez me convenço que é mais isso…

…mais uma caminhada, agora sempre a descer, uma boa dezena de degraus, até ao cais de embarque…  por cima de som da musica que te vai ajudando a acordar mais um pouco, escutas o silvar das carruagens que se aproximam… 

…estugas o passo, serpenteando pelos pastelões habituais e aceleras no lanço final de escada até aterrares no cimento, a beirar a linha de segurança pintada no chão de amarelo vivo, com os carris no fosso uns dois metros abaixo…

…marcas posição num lugar, já estudado, para o metro estacar na tua frente, logo com uma das portas à tua frente…

…a imensa lagarta metálica pára e penetras no seu ventre, buscando um lugar vago… hoje correu bem… sentas-te num banco junto da janela e desligas de novo de tudo… durante cerca 25 minutos, mergulhas no prazer (um dos poucos que ainda sentes…) da leitura, acompanhado de uma banda sonora que te faz alhear mais ainda de tudo à tua volta…

(…)

“Rato, estação terminal”, anuncia a menina da gravação… com pesar, soltas-te da aventura em que estavas imerso com o Gabriel Allon, na ficção vertida nas folhas que devoraste no trajecto que nem praticamente sentiste fazer…

…de volta à realidade, fazes mais um ziguezaguear ligeiro pelos corpos que caminham na tua frente… mais uma olhadela no relógio digital do cais de desembarque…   09:43… passagem rápida nos torniquetes electrónicos e viras à esquerda… escadas rolantes avariadas… mais uma meia-centena de degraus para subir até chegares à rua…

…a chuva parou aqui mas um vento frio faz com que corras o fecho do casaco até sentires o pescoço e a nuca protegidos….

…atravessas a rua alcatroada e estás no lugar onde, infelizmente, passas a maior parte dos teus dias, ultimamente…

…bons-dias para o povo, a caminho da tua secretaria…

…olhas o amontoado de processos, papeis avulsos, em cima e a rodear a tua mesa de trabalho, que teimam em quase nunca te a deixar ver por completo, nestes anos todos…

…aquela sensação de estares dentro de uma cova num areal, tirar a areia para fora com um balde cheio e ela a continuar a escorregar para dentro, devagarinho, até quase te enterrar vivo aos poucos…

…bem, que se foda… esqueces isso agora… ligas o pc e deitas-te ao trabalho… estás aqui para isso mesmo…

…a manhã corre célere…  …divides a tua atenção entre o cumprimento processual, o telefone que toca quase de cinco em cinco minutos, as corridas para a reprografia e o vai-vem entre os gabinetes nos andares superiores e o 1º piso …

…quase sem dares por isso está próximo da hora de almoço… uma saída rápida para trazer qualquer coisa para forrar o estômago, agora que o sossego vai voltar momentaneamente à sala onde laboras…

…entretanto, os do costume saem em rebanho para pastar… não os acompanhas nunca, são apenas teus colegas de serviço e alguns deles nem sequer valem como pessoas integras para ti, que tens pouca paciência para hipocrisias e duplicidades de atitudes, conforme lhes vai dando jeito …

…como diz uma canção:

“Não tenho medo dos lobos
Nem paciência para o teu pastor
Ovelha negra
Carneiro preto
Eu vou direito ao deserto”

…é… o Tim é que tem razão… direito ao deserto…

…deserto… é assim que está tudo à tua volta… …agora aqui nesta sala e em grande parte da tua vida…

…acabas de comer a sopa da pedra, reconfortante neste dia frio, lavas os dentes e tiras uma caneca de café bem quente…

…sais para o pátio das traseiras, inspiras o ar da rua, procuras um canto onde o sol, que timidamente se mostrou, embate pálido… 

…devagar, fumas o único cigarro de que, provavelmente, tiras verdadeiro prazer durante o dia de trabalho, enquanto tentas, por dez minutos, que seja alhear-te de tudo à tua volta, enquanto outros pensamentos te invadem… 

…estás longe agora… muito longe…

…abres os olhos e estás de novo no mundo real…de volta à luta…

…a sala entretanto parece agora uma feira, tal o arrazoado de berros e gritos quase histéricos da carneirada mole que regressou de barriga cheia lá de fora…

…a tarde corre como a manhã, mas mais cheia, mais intensa, mais corrida, porém contigo mais desperto… dás por ti com o horário de saída ultrapassado, duas, três ou quatro horas depois…

…olhas em volta, antes de te preparares para regressar a casa e tens a sensação de que o buraco está um pouco mais fundo e a areia continua a cair lá para dentro…  por hoje (sim, hoje porque até vais sair antes da meia-noite, seja por cansaço, desmotivação, desilusão, ou tudo isso em simultâneo, e não porque não haja ali que fazer) vais sair dele, desse buraco, dessa cratera escura e vais tentar dar repousar um pouco…

(…)

…o percurso exactamente inverso e similar ao da manhã, agora de volta a casa, está quase feito, enquanto vais pontapeando as folhas douradas e âmbar que se forram o chão húmido da geada que já começou a cair… pouco passa das nove da noite e a claridade já deu lugar ao breu, horas atrás, quando entras na tua toca…

…a rotina do costume…  duche tomado, fato de jogging vestido não para correr mas para vagueares pelo apartamento, deixar a roupa preparada para o dia seguinte, ligar a tv para que o som te transmita a sensação de companhia, jantar para um, lavar loiça…

…um ultimo café e mais uns cigarros, sentado no sofá, o olhar vago no zapping televisivo ou da net…

…como quase sempre o sono vem tarde… são duas da manhã quando depositas num canto da memória os despojos do dia, afundando o corpo na cama larga e vazia… sendo certo que não vais ser resgatado depressa para os braços de Morfeu, porque estes são os momentos em que outros pensamentos adormecidos durante o dia te vão assaltar uma vez mais, amachucando-te o coração e a alma, quando o descanso e a paz de espírito era o que mais desejavas…

…acabarás por extinguir tudo isso pela exaustão e esquecer-te, momentaneamente, de tudo, até que sejas de novo acordado para a dormência sonâmbula de mais um dia…     


JP ®  




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