quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

…o fim do mundo… (parte 2: epílogo e renascimento)
















…um click metálico ecoa no ar quieto da noite, soltando a coleira do Joly…

…mesmo sabendo que está livre da trela, fica estático olhando em frente, esperando que lhe dê o sinal que conhece desde cachorro e que lhe indica que está pronto para deambular a seu bel-prazer: uma pancadinha seca na parte traseira do lombo e sai disparado, em correria, pelo trilho que atravessa o bosque…

…sentindo debaixo das botas as folhas secas caídas do plátano à entrada do caminho florestal, acostumo rapidamente os olhos à escuridão, onde começo a distinguir, metros à frente, a sombra do cão, ziguezagueando de cauda no ar e focinho farejando o chão…

…o ar de principio de noite de inverno está límpido, seco, fresco sem estar demasiado frio como é habitual em Dezembro nestas paragens…

…um piar de noitibó, solta-se do alto dos pinheiros, ao mesmo tempo que o Jolas regressa até junto de mim, língua de fora, em trote suave…

…afago-lhe o focinho, as orelhas e o topo da cabeça… “lindo, Jolas, lindo”… e ele responde-me quase que sorrindo com o olhar… “mais uma voltinha, bicho…?”, pergunto … na afirmativa, passa ao meu lado e direcciona-se para fora da mata, ficando imóvel por uns momentos, porque sabe que o passeio pela estrada é sempre atrelado, por cautela e devido ao eterno vício que tem de tentar morder os pneus dos carros que passam por ele…

…subimos uma leve inclinação de terreno asfaltado, ponteado por diversas arvores plantadas em ambos os passeios, até chegar a um planalto de terra batida…

…do lado nascente, as luzes trémulas das ruas e das casas da vila, espalhadas encosta da Gardunha abaixo, entrecortadas pelo arvoredo que desce até à ribeira, lembram uma cascata sanjoanina, aninhada em silêncio…

…no topo da serra a norte, os pontos vermelhos que sinalizam os gigantes moinhos eólicos, piscam em intervalos mais ou menos regulares, até se perderem de vista para oeste…     

…o céu tem uma névoa lisinha e atapetada, mal deixando ver as estrelas e impedindo que o quarto crescente da lua ilumine com muita clareza tudo cá em baixo…

…se tivesse mais frio e com previsão de chuva, talvez até caísse neve…

…neve que me faz lembrar o meu pequeno desejo para o dia do fim do fundo…  

…e que afinal estava aprazado para anteontem e não aconteceu…

…desço devagar em direcção a casa dos meus pais, com o Joly saltitando de um lado para o outro do caminho, mergulhando uma vez por outra na vegetação das bermas, reconhecendo e marcando aquele trajecto que já não trilhava há algum tempo…

…acendo um cigarro, protegendo-o com a manga do casaco da leve brisa que sopra de sul e o relógio da torre da igreja lá longe faz soar sete badaladas, marcando as horas…

…enquanto solto o fumo, vejo-o subir no ar, onde se vai fundir com aquele que se eleva vindo das lareiras aconchegantes em cada casa das redondezas…

…caminho mais lentamente, antecipando com alguma delícia o prazer de disfrutar o presépio vivo que, nestes dias,  tenho a sorte de apreciar na alegria contagiante de um pimpolho de oito meses… que veio ressuscitar um pouco o meu pai, dando-lhe brilho no olhar embaciado e quase sem vida que a doença lhe trouxe… que veio dar um pouco de esperança e alegria quase infantil, mas tremendamente  emocionante à melhor pessoa que conheço neste mundo e que é a minha mãe… que colocou um sorriso radioso na cara do meu irmão como nunca vi antes em 39 anos e meio que o conheço…   

…na época do ano em que a maioria das pessoas, de repente e hipocritamente, se lembram que o amor, a solidariedade, o calor humano existem e, plasticamente, os transmitem das mais diversas formas para os esquecerem o resto dos restantes 364 dias do calendário, tenho ao alcance das mãos, por pouco tempo que seja, um tónico simples que tentar renascer para os dias que virão… renascimento que sinto em cada ínfimo minuto que estou com aqueles que realmente amo sem reservas…  seja, como hoje é, véspera da noite de Natal ou não… seja depois de cada fim de mundo que me atinge ciclicamente…  


JP ®

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