domingo, 9 de dezembro de 2012

Memórias do século passado III – Hac-Sá (…Aida P.)

…o sol vai descendo lentamente à minha direita sob a ilha de Coloane, ainda longe de atingir o ocaso no imenso dia de Maio, neste verão solarengo e húmido…
…deitado de costas, sinto uma brisa quente a percorrer o meu corpo vinda de Sul, do lado do Mar do Sul da China, que ouço desfazer-se em ondas a poucos metros de mim…
…”Bernaaaard”, gritam ao meu lado…. "Bernaaaard”, de novo…
…abro os olhos, ergo o tronco, ficando apoiado nos cotovelos…

…junto a mim, ela está de pé, voltada para oriente e faz um sinal com a mão lá para fundo do areal negro da praia, murmurando algo entredentes…

…um miúdo de cinco anos, cabelo negro cortado à escovinha e olhos piscos, vem em correria desenfreada na sua direcção, abrandado o passo à medida que se aproxima da mãe e pára na sua frente, cabisbaixo…

…Aida dirige-lhe umas palavras em tagalog, de modo suave mas firme, mão na anca e dedo indicador espetado junto do nariz…  apesar de apenas entender uma palavra ou outra do dialecto filipino, imagino pela cara do puto que deve estar a levar um raspanete…

…acena com a cabeça devagar, aceitando a repreensão da progenitora e, antes de sair de novo disparado a correr na direcção da bola que deixou um bocado para trás, pisco-lhe o olho de modo cúmplice, recebendo com um leve sorriso envergonhado de volta…

…ela volta-se para mim, olhando-me de cima com os seus olhos rasgados …

…“Don’t encorage him…”, diz de sobrolho franzido e depois ajoelha-se junto a mim já com um sorriso de andorinha desenhado na face…

…segura-me o rosto com as mãos em concha e beija-me suavemente, para fixar o olhar depois num ponto acima do meu lábio superior…

…passa indelevelmente um dedo por cima da cicatriz ainda fresca que ali ostento, fruto de uma noite em que fui apanhado no meio de uma rixa entre chineses na discoteca do Casino Jai-Alai…

…”it hurts…?”

…abano a cabeça na negativa, fito nos seus olhos castanhos, amendoados…

 …a ternura e o carinho irradiam deles, assim como tudo o que esta rapariga me transmite…

...mirando o horizonte, com a silhueta do Westin Resort recortado lá no fundo, vai vigiando as brincadeiras do filho, enquanto ajeita o fato de banho clássico na forma do seu corpo, deitando-se sobre mim, apoiando o rosto no meu peito ainda molhado dos mergulhos na água escura de Hac-Sá…

…o céu azul começa a ficar com tons dourados à medida que o fim de tarde se aproxima…

…aninho-me um pouco mais com a Aida, sentindo as suas pernas esguias cruzarem-se com as minhas, enquanto lhe vou acariciando o longo cabelo negro e beijando a testa…

…recordo a primeira vez que fizemos amor, depois de já nos conhecermos há algum tempo e travarmos amizade… e de ela ter chorado então, sentada na cama, a cara escondida, apoiada nos joelhos, as pernas flectidas, deixando-me completamente à toa por momentos…

…e quando lhe perguntei porque chorava me ter dito que ela não era mais uma “girl”, ao que lhe retorqui que sabia e sentia bem isso… e ter falado de forma quase inaudível, passados uns minutos, ainda na mesma posição, que sabia que ia sofrer muito depois, porque gostava muito de mim e sabia que a nossa relação ia ter um termo certo quando eu terminasse o meu trabalho em Macau…   

…recordo também como ela, mesmo sabendo disso, continuou a cuidar de mim com pequenos pormenores deliciosos, como aparecer em minha casa em dias de fim-de-semana de manhã cedo, com papaias frescas e pasteis de nata quentes, para ficarmos a tomar o pequeno-almoço na cama até meio da tarde… ou como me deixava bilhetes debaixo das garrafas de Coronas com limão, que me serviam no bar onde ela era gerente… mensagens simples como “…I love you like soft warm rain in spring…” ou “…please, don’t drink too much, love…

…acordo destes pensamentos, com ela a depositar um beijo longo e profundo na minha boca, correspondido com ardor e depois a sussurar no meu ouvido... “mahal kita, Pedro”…

…Bernard já voltou da futebolada solitária, vindo do outro extremo da praia e pergunta algo à mãe… ela solta uma gargalhada e traduz-me a fala do garoto…  se podíamos comer “bichinhos vermelhos com antenas (camarão) e gelado”…  

…esfrego-lhe o cabelo no topo da cabeça, preto como o que herdou da mãe e respondo-lhe “ok, let’s go right now” para sua grande satisfação… e saímos os três devagarinho caminhando pela beira-mar, na direcção do Fernando para uma refeição sossegada antes de regressarmos a Macau, num quadro que, naquele momento, se aproximava mais de uma família feliz, num passeio de domingo…

…passaram mais de treze anos, entretanto…

…a Aida está guardada ternamente num canto do meu coração, como das pessoas mais bondosas, carinhosas e lindas (por fora e por dentro) que conheci… e que mais felizes merecem ser nesta vida…
…o antepenúltimo dia antes de regressar a Lisboa, estive sempre junto dela, com alegria e tristeza misturadas, passando a ultima noite em comunhão, no seu apartamento na Taipa, apenas dormindo muito agarrados um ao outro, sabendo que a separação era inevitável…
…combinámos que não nos despediríamos… apenas nos deixaríamos de ver… até qualquer dia… …e pouco antes do nascer do sol, saí silenciosamente, deixando-a agasalhada num edredom de penas cor-de-rosa e mergulhei no nevoeiro, vagueando lentamente até apanhar um táxi junto do Jockey Club para regressar a casa…

…recordo ainda a areia preta de Hac-Sá que para nós dois era quase tão maravilhosa como a areia clara de qualquer praia de Koh Samui onde passámos cinco dias idílicos…
…os seus ciúmes loucos, principalmente os que tinha da Sylvia, a minha empregada de limpeza, filipina como ela, mas a quem se referia com “that indian”, porque tinha mais traços polinésios do que os seus marcadamente asiáticos… … o seu sorriso largo, as suas gargalhadas e também o seu olhar profundo e por vezes melancólico…
…um “presente especial” que me ofertou ao bater a meia-noite da data do meu aniversário… quando, em boa verdade, ela já era um “presente especial” na minha vida…

 …e recordo, também, a sua musica preferida, que tantas vezes trauteava, que dizia ser a “nossa” e que colocava vezes sem conta a tocar na jukebox do Irish Bar…


JP ®

         Savage Garden - ''Truly Madly Deeply''

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