…o sol vai descendo lentamente à minha direita sob a ilha
de Coloane, ainda longe de atingir o ocaso no imenso dia de Maio, neste verão
solarengo e húmido…
…deitado de costas, sinto uma brisa quente a percorrer o
meu corpo vinda de Sul, do lado do Mar do Sul da China, que ouço desfazer-se em
ondas a poucos metros de mim…
…”Bernaaaard”, gritam ao meu lado…. "Bernaaaard”, de novo…
…abro os olhos, ergo o tronco, ficando apoiado nos
cotovelos…
…junto a mim, ela está de pé, voltada para oriente e faz
um sinal com a mão lá para fundo do areal negro da praia, murmurando algo
entredentes…
…um miúdo de cinco anos, cabelo negro cortado à escovinha
e olhos piscos, vem em correria desenfreada na sua direcção, abrandado o passo
à medida que se aproxima da mãe e pára na sua frente, cabisbaixo…
…Aida dirige-lhe umas palavras em tagalog, de modo suave
mas firme, mão na anca e dedo indicador espetado junto do nariz… apesar de apenas entender uma palavra ou outra
do dialecto filipino, imagino pela cara do puto que deve estar a levar um
raspanete…
…acena com a cabeça devagar, aceitando a repreensão da
progenitora e, antes de sair de novo disparado a correr na direcção da bola que
deixou um bocado para trás, pisco-lhe o olho de modo cúmplice, recebendo com um
leve sorriso envergonhado de volta…
…ela volta-se para mim, olhando-me de cima com os seus
olhos rasgados …
…“Don’t encorage him…”, diz de sobrolho franzido e
depois ajoelha-se junto a mim já com um sorriso de andorinha desenhado na face…
…segura-me o rosto com as mãos em concha e beija-me suavemente,
para fixar o olhar depois num ponto acima do meu lábio superior…
…passa indelevelmente um dedo por cima da cicatriz ainda fresca
que ali ostento, fruto de uma noite em que fui apanhado no meio de uma rixa
entre chineses na discoteca do Casino Jai-Alai…
…”it hurts…?”
…abano a cabeça na negativa, fito nos seus olhos
castanhos, amendoados…
…a ternura e o
carinho irradiam deles, assim como tudo o que esta rapariga me transmite…
...mirando o horizonte, com a silhueta do Westin Resort
recortado lá no fundo, vai vigiando as brincadeiras do filho, enquanto ajeita o
fato de banho clássico na forma do seu corpo, deitando-se sobre mim, apoiando o
rosto no meu peito ainda molhado dos mergulhos na água escura de Hac-Sá…
…o céu azul começa a ficar com tons dourados à medida que
o fim de tarde se aproxima…
…aninho-me um pouco mais com a Aida, sentindo as suas
pernas esguias cruzarem-se com as minhas, enquanto lhe vou acariciando o longo
cabelo negro e beijando a testa…
…recordo a primeira vez que fizemos amor, depois de já
nos conhecermos há algum tempo e travarmos amizade… e de ela ter chorado então,
sentada na cama, a cara escondida, apoiada nos joelhos, as pernas flectidas, deixando-me
completamente à toa por momentos…
…e quando lhe perguntei porque chorava me ter dito que
ela não era mais uma “girl”, ao que lhe retorqui que sabia e sentia bem isso… e
ter falado de forma quase inaudível, passados uns minutos, ainda na mesma
posição, que sabia que ia sofrer muito depois, porque gostava muito de mim e
sabia que a nossa relação ia ter um termo certo quando eu terminasse o meu
trabalho em Macau…
…recordo também como ela, mesmo sabendo disso, continuou
a cuidar de mim com pequenos pormenores deliciosos, como aparecer em minha casa
em dias de fim-de-semana de manhã cedo, com papaias frescas e pasteis de nata
quentes, para ficarmos a tomar o pequeno-almoço na cama até meio da tarde… ou
como me deixava bilhetes debaixo das garrafas de Coronas com limão, que me
serviam no bar onde ela era gerente… mensagens simples como “…I love you like soft
warm rain in spring…” ou “…please, don’t drink too much, love…
…acordo destes pensamentos, com ela a depositar um beijo
longo e profundo na minha boca, correspondido com ardor e depois a sussurar no
meu ouvido... “mahal kita, Pedro”…
…Bernard já voltou da futebolada solitária, vindo do
outro extremo da praia e pergunta algo à mãe… ela solta uma gargalhada e
traduz-me a fala do garoto… se podíamos comer
“bichinhos vermelhos com antenas (camarão) e gelado”…
…esfrego-lhe o cabelo no topo da cabeça, preto como o que
herdou da mãe e respondo-lhe “ok, let’s go right now” para sua grande
satisfação… e saímos os três devagarinho caminhando pela beira-mar, na direcção
do Fernando para uma refeição sossegada antes de regressarmos a Macau, num
quadro que, naquele momento, se aproximava mais de uma família feliz, num
passeio de domingo…
…passaram mais de treze anos, entretanto…
…a Aida está guardada ternamente num canto do meu
coração, como das pessoas mais bondosas, carinhosas e lindas (por fora e por
dentro) que conheci… e que mais felizes merecem ser nesta vida…
…o antepenúltimo dia antes de regressar a Lisboa, estive
sempre junto dela, com alegria e tristeza misturadas, passando a ultima noite
em comunhão, no seu apartamento na Taipa, apenas dormindo muito agarrados um ao
outro, sabendo que a separação era inevitável…
…combinámos que não nos despediríamos…
apenas nos deixaríamos de ver… até qualquer dia… …e pouco antes do nascer do
sol, saí silenciosamente, deixando-a agasalhada num edredom de penas
cor-de-rosa e mergulhei no nevoeiro, vagueando lentamente até apanhar um táxi junto
do Jockey Club para regressar a casa…
…recordo ainda a areia preta de Hac-Sá que para nós dois
era quase tão maravilhosa como a areia clara de qualquer praia de Koh Samui
onde passámos cinco dias idílicos…
…os seus ciúmes loucos, principalmente os que tinha da
Sylvia, a minha empregada de limpeza, filipina como ela, mas a quem se referia
com “that indian”, porque tinha mais traços polinésios do que os seus
marcadamente asiáticos… … o seu sorriso largo, as suas gargalhadas e também o seu
olhar profundo e por vezes melancólico…
…um “presente especial” que me ofertou ao bater a
meia-noite da data do meu aniversário… quando, em boa verdade, ela já era um “presente
especial” na minha vida…
…e recordo,
também, a sua musica preferida, que tantas vezes trauteava, que dizia ser a “nossa”
e que colocava vezes sem conta a tocar na jukebox do Irish Bar…
JP ®
Savage Garden - ''Truly Madly Deeply''
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