domingo, 1 de junho de 2014

…66% de democratas…

…nariz espetado contra a vidraça da janela da sala num res-do-chão da Rua Maria Pia, em Lisboa, em bicos dos pés em cima do pequeno banco de cozinha rectangular (que ainda hoje existe algures)…  a ver a estação ferroviária de Alcântara-Terra do outro lado da rua, um chaimite (…maquineta esquisita de que nunca tinha visto ou ouvido falar…) a subir rua acima na direcção da Tapada das Necessidades, outro a descer (talvez o mesmo) passados poucos minutos direito à Rua Prior do Crato, duas centenas de metros mais abaixo… 
…assim estava eu, quase a fazer sete anos de idade, naquele meio de tarde de uma quinta-feira de Abril, dia 25…
…de manhã já algo fora do comum tinha acontecido: não tinha havido escola e, se bem me lembro, a minha mãe não fora trabalhar…
...até ao meio-dia, as horas correram normalmente, embora estranhasse o entra e sai de alguns vizinhos de casa para casa no prédio, as conversas expectantes dos adultos em redor da telefonia da cozinha, o silêncio na sala de cortinas cerradas, onde amiúde alguém espreitava lá para fora, perscrutando algo que eu não entendia o quê…
…grande novidade parecia andar lá fora, mas a mim a que me interessava mais estava até estava ali em casa e era o meu irmão, bebé a um mês de fazer um ano de vida… e que eu “encomendara” à minha mãe, cerca de um ou dois anos antes, porque “queria um mano para jogar à bola”… e a quem eu tinha escolhido o nome quando, no vai-vem de um baloiço no saudoso Parque do Alvito, ouvi uma senhora a chamar o filho que estava ao meu lado… a fonética agradou-me e diz a minha mãe que fui, a correr, ter com ela: “oh Mãe, quando o mano nascer chama-se Nuno, tá bem...?”    
…e a “mudança” lá fora aconteceu, nesse dia, transformando de uma forma ou de outra e com mais ou menos intensidade, a vida das pessoas…
…deste dia em si, pouco mais me lembro… na altura, estava a poucos dias de mudar de casa (de Alcântara para uma casa “mesmo nossa” nos Olivais) e também andava um bocado tristinho porque ia deixar de ver a Tininha, a minha “namorada” (a primeira de que me lembro…rsrs) que vivia no andar de cima…lembro-me que ela devia ter mais ou menos a minha idade, tinha os olhos grandes,  um cabelo muito preto, onde por vezes usava “totós”,  uma irmãzita a quem chamavam Gaby e de que eu tinha um rival no que respeitava “aos favores do seu coração” que era o Paulinho, que morava (amiúde) com os avós, no ultimo andar do prédio…
…do 1º de Maio já me recordo com mais nitidez… muita gente na rua, avenidas cheias, muitas cores, muita alegria nos rostos e nas vozes, muitos cartazes e bandeiras… e os dos tempos seguintes (sonhadores, idealistas e também conturbados e difíceis, em certas facetas) também me saltam com mais facilidade no baú da memória, até porque vivi o 11 de Março e o 25 de Novembro de 1975, bem no centro de um dos palcos de cada um deles, agora que morava noutro bairro, onde também por força da liberdade recém-reconquistada, as pessoas eram bastante mais expansivas e interventivas, social e politicamente…
…nestes anos entretanto passados, fui crescendo gradualmente, também em consciência “social e política”, e atingi (e ultrapassei) os 40 anos, tal como a revolução que agora os completou…
…e mesmo não tempo vivido tão profundamente ou consciente como muitos (também por força da minha idade) os tempos e as incidências que antecederam o 25 de Abril, na minha opinião tudo resultou numa enorme desilusão, passados então estes anos até se atingir a “maturidade dos 40 anos em democracia” …
…e se eu o sinto assim, imagino como se sentiram todos os que fizeram tanto e a tanto custo para se reganhar a liberdade e todas os ideias a ela associados numa vida em sociedade…
…além de todos os heróis anónimos dos nossos ditos “dias de luta contra a ditadura e dias de democracia pós-25 de Abril” e fazendo um balanço de tudo de bom ou de mau que passou nos 40 anos que rolaram até hoje, restam poucos e poucos são os que vêm à mente como sendo pessoas  que me merecem respeito por mostrarem integridade, verticalidade e honestidade intelectual e cívica: Ernesto Melo Antunes, Fernando Salgueiro Maia, António Ramalho Eanes, Francisco Salgado Zenha e, até mesmo, Álvaro Cunhal, mesmo com uma teimosia brutal, mas sempre coerente (porque acreditava de facto numa ideologia politica) até ao fim dos seus dias… mas, enfim, até compreensível, porque é difícil um homem da sua geração que sempre acreditou e lutou uma vida inteira tendo por base uma ideologia política e um modelo de sociedade, ver num ápice temporal de poucos anos, o mundo gritar-lhe na cara (nomeadamente os países, até aí arquétipos da sua filosofia politica), que afinal estava tudo errado e que tudo era apenas imensa utopia…    (…o meu avô paterno, também sempre acreditou desde pequeno que o que vê na lua olhando cá de baixo é “um homem com um molho de silvas às costas”, logo não havia forma de o convencer que os americanos tinham mandado homens para andar por lá…rsrs)
…olhando para tudo o que resta desde então: ou são os mesmos de sempre e em todos os quadrantes (…grandes “democratas”, essencialmente para eles mesmos, que até hoje, alguns mesmo quase esclerosados, gravitam os centros de poder e decisão…e daí sempre colhem os seus frutos, directa ou indirectamente); ou são os que os sucederam e os “filhos” destes, duas sucessivas gerações de jotinhas dos vários partidos políticos, que, falando em bom português, nunca fizeram a “ponta d’um corno” ou “vergaram a mola” e que tomando por “verdadeira” carreira profissional a política, nos vão “empalando” devagarinho e outros prepararam-se nas “universidades de verão” para nos fazer o mesmo lá mais para a frente… 
…será esta uma das razões essenciais pelas quais já deixei de ir votar há bastantes anos… votei pela 1ª vez em 1986, numas eleições presidenciais em que votei em Salgado Zenha, por me parecer uma pessoa séria e diferente no seu tipo de discurso, que se quedou pela 1ª volta, talvez pelo estigma de ter o PCP a apoiá-lo, após desistência do seu candidato… na 2ª volta dessas eleições, havendo dois outros candidatos, votei no maior “pardal pançudo” de Portugal chamado Mário Soares… (e bem depressa me arrependi…), até porque Freitas do Amaral me inspirava tudo menos confiança, com aquele sorriso plástico…(mil vezes preferia o Eanes, mesmo sem sequer sorrir…)
…e quem se lembra dos mimos com que se brindavam um ao outro nessa campanha, não pode deixar de sorrir sarcasticamente vendo-os hoje, desfazendo em elogios mútuos e caindo nos braços um do outro…
…depois disso, votei em duas eleições legislativas, duas eleições autárquicas e uma vez em eleições europeia (as 1ªs que houveram…)
…e depois…fartei-me de engolir tretas de políticos…de todos eles…
…no dia seguinte às ultimas eleições europeias, após jantar, sentado placidamente no sofá da sala, a tomar o meu café e a fumar o meu cigarro, sai-me TV fora o sr. Miguel Sousa Tavares, “eminente comentador político/social”, indignadíssimo (na esteira de outros) com os níveis de abstenção (na ordem dos 66% em Portugal, com níveis similares pela Europa Europeia fora)… 
…zurzindo na cidadania de cada um dos abstencionistas, colocou a questão de saber a breve trecho se os portugueses queriam “saber” viver em democracia, exercendo o seu direito (ressalvo a palavra “direito” e não obrigação, tenha-se em atenção) ou se seria melhor viverem noutro sistema de governação, reduzindo-os a pouco mais de irresponsáveis ou acéfalos…
…ora, ou o senhor doutor deve andar muito distraído e faz-se de sonso, senão diga-me francamente: acha que, já há vários anos a esta parte, em Portugal (e analisando em consciência o estado geral da nossa sociedade) se vive verdadeiramente em democracia…?
…eu gosta de viver numa democracia, porque apesar de algo utópica é uma “ideia” bonita… mas isso não acontece, logo como “adepto” da democracia, não voto, sr Miguel…
…eu não fui votar (nem vislumbro, tão cedo, vontade ou razões para entregar o meu voto a qualquer das propostas “democráticas" que me são apresentadas) e se o sr. Sousa Tavares o foi fazer e o faz regularmente, não o faz mais cidadão que eu por causa disso…
…eu trabalho (e muito), ele também deve trabalhar; ele deve ter livre arbítrio e deve respeitar o meu; eu não tenho dívidas a particulares ou ao Estado e cumpro as minhas obrigações fiscais, acho que também este senhor deve estar na mesma situação … se bem que, quase de certeza, eu pago proporcionalmente mais impostos como funcionário público do que o senhor Miguel colectado provavelmente com jornalista (pois…),ou  escritor (rsrs…),ou  filho dilecto de quem  é, ou “eminente comentador político/social” (“cagador de sentenças”, em linguagem mais gráfica)…
…assim sendo, sou tão cidadão como este senhor, que tão ciente dos seus valores que defende (como os direitos dos fumadores, as touradas ou o acordo ortográfico – concordando eu com o seu ponto de vista  nuns e discordando completamente de outros), deveria igualmente respeitar as opções dos seus concidadãos… até porque esse é, ao que julgo saber, um dos pilares da democracia…certo…?
…em alternativa, e no sentido de fazer reverter os números da abstenção que tanto incomodam o sr. Sousa Tavares e outros, não seria descabido se calhar fazer uns sorteios de uns automóveis topo-de-gama entre os votantes….ou então, o sr. Miguel ele próprio se candidatar a qualquer cargo político numa qualquer lista partidária…
…afinal de contas, se o Dr. Marinho e Pinto foi, neste último 25 de Maio, eleito para o parlamento europeu e os brasileiros elegeram o palhaço Tiririca para deputado federal, pode ser que você se safe também…
***
PS (salvo seja, cruzes canhoto…rsrs…leia-se “post scriptum”), em adenda ao post supra:
No dia 30 de Maio, o sr. Presidente da República, Prof. Dr. Cavaco Silva, criticou igualmente a elevada abstenção, replicando as considerações que já tinha formulado em Junho de 2009 (anteriores eleições europeias), nomeadamente esta “pérola”:
“…a abstenção deve fazer reflectir os agentes políticos, já que a confiança dos cidadãos nas instituições democráticas depende, em boa parte, da forma como aqueles que são eleitos actuam no desempenho das suas funções…”
…vinda de quem vem (que tendo estado onde já esteve no passado e estando onde está hoje), acho que a afirmação nem merece comentários… ou então apenas constatar que, afinal, ainda antes e tal como no Brasil, já elegemos “palhaços”…e alguns mais que uma vez….

JP ®


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