...dificilmente algo tão maravilhosamente belo, singelo e verdadeiro como esta crónica de António Lobo Antunes me deu tanto deleite ler...as coisas mais simples das nossas vidas são, realmente, aquelas que mais prazer nos dão...mesmo que só nos venhamos a aperceber disso com mais clareza passado algum (às vezes muito) tempo...
Ilustração: Susa Monteiro
Agrafar, carimbar, cortar uma página pelo picotado,
fazer buraquinhos numa folha com aquela maquineta de fazer buraquinhos, o
palrar de um bebé, calar de súbito o som a meio de uma ária de ópera, esmagar
as bolhinhas de uma folha de plástico transparente, ver da janela, lá em baixo,
o primeiro pássaro da manhã, olhar o retrato do Papa Inocêncio de Velázquez,
meter na boca um pé de criança de três meses, uma finta de Garrincha na
televisão, o sorriso súbito de certas mulheres, um sino de aldeia ao fim da
tarde, as luzes de Beja à noite na planície, a Serra da Estrela vista da
varanda dos meus avós quando eu tinha cinco anos, a minha filha Joana,
pequenina, a desenhar a sua primeira árvore, o meu avô a fazer-me uma festa
comigo quase a adormecer, o tenente, quando eu era cadete, a ordenar a Marcha
lento e à vontade, um pirilampo no quintal a meio da noite, a voz da minha mãe
a recitar António Nobre, um gato caminhando devagarinho no muro da buganvília,
montar uma zebra de pau no carrossel do oito, dizer gosto de ti para um rosto
que aumenta, os olhos azuis da Avó Querida quando me chamava meu amor, agrafar
mais, carimbar mais, uma mulher a murmurar Meu Deus na almofada, o pneu afinal
não ter furo nenhum, o médico junto à minha cama Vou dar-lhe alta, um falcão a
passar junto à janela, o guardanapo com uma rã a saltar ao eixo, começar a ver
o fundo do prato quando me davam sopa, beber água da bilha na casa de Nelas, a
campainha do recreio a meio de uma frase do professor de Matemática, a primeira
vez que dancei de cara encostada com uma menina de treze anos também, o palhaço
que me apertou a mão no circo, a tia Madalena para mim Estou aqui filho comigo
com a tuberculose, o raio verde no Caramulo, agrafar mais, carimbar mais,
vestir a camisola do Benfica aos quinze anos no primeiro treino, as Variações
Goldberg, chegar da mata em Angola, os primeiros passos da minha filha Zézinha,
eu a ensinar a Isabel a ler, o meu primo António a explicar-me Se a mãe sêsse o
pai puzia gravata, um abraço do meu tio João Maria, o meu pai a deixar--me
ganhar-lhe uma corrida, o meu irmão Pedro a contar Já vou no Pardal de regresso
de uma aula de Catequese sobre o Espírito Santo, o primo Alfredo que me
levantava acima da sua cabeça e eu maior do que toda a família, a minha mãe
perfumada com Chanel número cinco, a Gija a coçar-me as costas antes de me
vestir o pijama, a professora de Português, no primeiro ano do liceu, a
apontar-me à turma Este menino vai ser um grande escritor e eu feliz, a
primeira vez que li A Ruiva de Fialho de Almeida, o sabor da minha boca depois
de um rebuçado de hortelã pimenta, a cor do mar da Praia das Maçãs às seis da
tarde, receber uma carta de Céline quando lhe escrevi aos quinze anos, o dia em
que o Cifra me veio dizer que tinha uma filha e fui chorar de felicidade e
raiva para o arame farpado, os meus pais terem-me encontrado quando me perdi em
Veneza aos sete anos junto a um dos leões de pedra na Praça de São Marcos, o
meu avô a murmurar Meu netinho acariciando-me o pescoço, beber água da bilha, o
primeiro dente de leite que descobri de manhã na almofada, a esperança de
voltar a ler As Aventuras De Dona Redonda E Da Sua Gente, a minha pilinha de
repente grande e eu cheio de orgulho e vergonha, com a minha mãe a fingir que
não via, o tio Joaquim a levar-me até aos Correios, na Beira Alta, no quadro da
bicicleta, o palhaço pobre que me deu um passou bem no circo, comer cocada de
Belém do Pará feita pela tia Isabel, eu em Paris à procura da cegonha que me
tinha trazido dali para Lisboa sete anos antes: ainda não perdi a esperança de
a encontrar e de certeza que ela se lembra de mim, acho eu. Ter feito chichi em
Nova Iorque ao lado de Mickey Rooney. Cortar, mal acabe isto, todas as páginas
do bloco pelo picotado. Acho que devo ter por aí uma dessas coisas de fazer
buraquinhos: que mais pode um homem desejar?
Publicado
por António Lobo Antunes , em 23 de Novembro de 2017 in
revista “Visão”
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