quarta-feira, 1 de maio de 2013

…life goes on…

…a magnífica paelha, o “Evel” tinto e a conversa lânguida de fim de jantar tardio, com o café a escaldar nas chávenas, já estavam lá para trás na noite, enquanto o pequeno automóvel faz a curva devagar no cimo da rua empedrada de basalto e inicia cautelosamente a descida no piso molhado da cacimba que cai desde o fim da tarde…

…ela estica o pescoço um pouco acima do volante, tentando vislumbrar um espaço para estacionar, murmurando um palavrão entredentes…
- é sempre a mesma merda para arrumar o carro aqui…
…olho para uma estreita rua contigua à minha direita…
- e aqui…? – pergunto…
- não dá… por causa da recolha do lixo…ainda me riscam o carro todo com os caixotes…
- espera… - saio para a rua e desço uns metros até perto do final da rua, acenando-lhe depois…
…desliza com a viatura até junto de mim e indico-lhe um espaço vago num pequeno largo à esquerda…
…pisca-me o olho pestanudo e sinaliza-me um “thumb up” quando passa por mim…
…encosto-me numa ombreira larga de uma antiga mercearia de bairro, com umas maciças portas de madeira, tingidas de verde descolorado, puxo a gola do impermeável para cima e acendo um cigarro…
…escuto um som surdo da porta do lado do condutor a bater e o bip-bip agudo do fecho centralizado…   
…depois o toc-toc dos saltos das botas pretas, subidas até ao joelho, em cadência lenta, até ela surgir da penumbra à minha frente…
…balança a mala numa das mãos e com a outra tira-me o cigarro da boca…
- notei que andas a fumar muito, sabias…?  dá uma passa, soltando o fumo para o ar…
- já me disseram isso muitas vezes ultimamente… - respondo num meio sorriso…
…dá-me um beijo leve nos lábios, dá um piparote no tabaco para a calçada do passeio e enfia um braço no meu…
- por hoje já chega… vamos embora que tá a ficar frio… é incrível como consegues andar de t-shirt com este tempo…
- dizes tu…com essa quase mini-saia, né…?
…zizagueamos rua acima e entramos no prédio secular, ponteado na frontaria com azulejos azuis e brancos… …a porta da entrada range pesadamente ao ser franqueada e acostumamos a visão à fraca luminosidade da lâmpada que pende acima de nós…
…os degraus de madeira rangem enquanto subimos os três andares antigos até às águas-furtadas onde habita…
…agarrada ao corrimão, verde lima de ferro antigo, enfeitado de motivos florais, balança as ancas, na minha frente, as “bochechas” das nádegas a saltar à altura dos meus olhos…
irresistivelmente, dou-lhe uma palmada suave nos glúteos, mão semi-aberta…
…continuando a subida, olha-me de soslaio, com sorriso provocador, por cima do ombro…
…mais um lanço de escada e continua a dança à minha frente, de costas para mim… nova palmada carinhosa, de cima para baixo, agora na nádega direita, roçando os dedos pela coxa…
…abafa um riso, pára encostada à parede, com o olhar a bailar…
- pára, parvo… - e puxa-me pela manga do casaco de encontro a si…
…o temporizador da lâmpada do átrio da entrada termina o seu ciclo e ficamos iluminados pela escassa luz nocturna de uma lua a três quartos, que entra um pouca acima pela clarabóia do telhado…
…lábios molhados encontram-se com fulgor, mãos ansiosas percorrem o corpo um do outro com volúpia…
- espera… – diz-me ofegante – …ainda acordamos os velhotes do andar aqui ao lado…
…subimos o último lanço de escada…
…apalpa o fundo da mala, tira a chave do apartamento e entramos, fazendo voar a roupa pelo ar, aterrando com ardor nos lençóis cor-de-rosa da cama larga, sob a suave cor âmbar do abajour de um antigo candeeiro de pé…   
(…)
…debruçado sobre ela, sinto um estremecer entre as suas coxas, depois de um par de convulsões pelo seu corpo, abafa um sussurro mais alto de satisfação, enquanto entrevejo os seus dedos dos pés contorcendo-se prazenteiramente…
…puxa-me mansamente pelo cabelo, arrastando-me para cima do seu peito e toma-me o rosto entre as mãos, enfiando-me a língua garganta abaixo…
- chupas-me tão bem como uma gaja… - suspira em comentário de bissexualidade há muito assumida…      
- é o meu lado feminino a vir à tona… - digo a rir…
- estúpido… - devolve-me a gargalhada – já tava com saudades disto…
- disto…?
- de ti, da gente… assim…
…beijo-lhe a testa carinhosamente, sentindo o sabor salgado do suor, dela e meu…
- isso da “gente” é muito abrangente para o nosso caso, nina…
- tu entendestes o que quis dizer… quando falo da “gente” é assim como estivemos e estamos hoje… sei bem como é o nosso “caso”… mas isso não impede que tenha tido saudades tuas, certo…?
…deslizo lateralmente pela sua pele clara, apoiando-me no cotovelo direito, pernas entrelaçadas…
- pode ser… e sentiste isso apenas porque sou uma boa foda…?
…sacode o curto cabelo arruivado da testa e endurece o olhar…
- porra… - diz enfática - é apenas isso que sou pra ti…? …uma boa foda…?
…inclino a cabeça e suavizo a conversa…
- não…aliás, também és uma boa foda, sim… mas gosto de estar contigo, conversar contigo também…conseguimos ter conversas de jeito e és inteligente… sabes que isto é essencialmente cama, mas também nos damos bem fora dela…
- então estamos de acordo nisso… se fosse apenas queca também era uma chatice…- recupera o sorriso…
- desculpa, de qualquer modo… também me expressei mal há pouco…
…estica o braço esquerdo e o corpo nú para trás, em direcção do alçado da cama e tacteia um maço de cigarros…
- conhecemo-nos há quê…? …quinze, vinte anos…? – faísca a pedra do meu Zippo, que lhe apanhei caído no chão…
- desta forma, há doze anos, Lai… antes… há vinte e cinco, se quisermos considerar o ano em que nos conhecemos e depois só nos reencontrámos mais tarde - preciso eu depois de fazer um pequeno esforço de memória, enquanto ela me estende o cigarro já aceso, cuja oferta declino… (por hoje já chega, lembras-te...?)
- pois é…- sorri nostalgicamente – apareceste lá no colégio com o teu amigo Johnny que andava na minha turma e ainda andaste aos chochos com aquela gaja betinha da Praça da Armada… - diz-me em tom de gozação…
- e tu eras morena nessa altura, tinhas o cabelo comprido até ao rabo, namoravas com um tipo que tinha a mania que era cowboy, tocavas viola e eras um “pau-de-fio” – retruco em tom de gozo…
- as cenas de que lembras, caraças… ainda essa tenho a viola… acho que tá na casa dos meus pais – deita a cabeça no meu colo – e que conversa é essa do “pau-de-fio”, meu…? …tou gorda agora, é…? – belisca-me a barriga, fazendo uma careta divertida…
- nada disso, rapariga… para mãe de gémeos tão nova como foste e agora quarentona, tás um espectáculo …- aperto-lhe o nariz, devolvendo o “cumprimento”…
- …é…os meus filhotes foi praticamente a única coisa boa que o tal cowboy me deu…- diz cismando - …e tão uns homenzinhos…
- têm quê agora….? …20 anos, não é…?
- sim… e têm boa cabeça… a mãe com a idade deles tinha menos juízo… - suspira - …e tu, nestes últimos anos, até andastes desaparecido durante uns tempos…
…deito-me de costas… pouso a cabeça no colchão, com o olhar vago nas ripas da madeira castanha do tecto a desviar-me para outras paragens…
- foi… provavelmente pelas mesmas razões que tu também andaste…
…morde levemente um polegar, também com o pensamento longe dali por uns segundos…
- pro-va-vel-men-te… – soletra, sentada, tomando balanço para se levantar…
…sai da cama e esmaga a beata num cinzeiro de cerâmica, enquanto saltita até à casa de banho… ouço água a correr…regressa, com a cara fresca, molhada, com uma sweat-shirt vestida, roxa e tamanho XXL, a roçar os joelhos…
- apetece-me um Porto… queres…?
- pequenino… - exemplifico a medida com um gesto de mão, recostado num almofadão, despido por baixo do édredon…
…desliga a luz do candeeiro que ilumina a larga assoalhada, tipo loft, e volta para o leito, equilibrando dois pequenos cálices de cristal com liquido rubi, numa pequena bandeja, com uma vela aromática acesa…
…afasta um opaco cortinado, negro com estrelas prateadas e abre a janela sobranceira à cabeceira da cama…
- não vais ficar com frio…?
- é só por um bocadinho… - sorve o Offley, entregando-me o meu - …gosto do sentir o ar da noite…  
…duas da manhã e uma lufada fresca entra na casa…
… senta-se, virada para mim, pernas cruzadas, o pequeno copo junto ao peito…
- então, diz-me lá… estes anos de “sossego” foram bons….?
…acho graça ao termo aplicado…
- pode-se dizer que teve momentos bons e outros menos bons… e tu….?
- também foi por aí…podia ter sido melhor… mas não foi mau…bem pelo contrário…
- ele ou ela…?
- ela… – sorri da minha curiosidade – encaixávamos bem a vários níveis, mas acho que se acagaçou por causa da família… enfim…se as pessoas não se assumem, também não posso fazer milagres… mas foi pena…
…acena-me com a cabeça, incentivando e passando-me a palavra…
- comigo foram uma série de factores… ainda hoje estou para perceber o porquê de certas situações e atitudes…de ambos… e parece que cada vez me convenço mais que devia ter ficado no meu canto…
- e valeu a pena…?
…respiro fundo….o sabor e o perfume do vinho adoça-me a boca e a fala…
- deu para sonhar um pouco quando já não acreditava em sonhos… apenas acho que acabei por despertar de tudo isso de modo um bocado duro… não esperava que fosse assim, depois de tanto acreditar…
- não me respondeste, Pedro… - desvia uma madeixa dos olhos, sorrindo ao de leve…
- acho que valeu a pena, sim, Lai… quando amas alguém, vale sempre a pena, mesmo que doa durante e depois de todo esse processo…
- eu sei, querido… e como sei acredita… como é que diz a canção…? “Quem nunca curtiu uma paixão, nunca vai ter nada não”, não é…?
- é…- confirmo o refrão – embora não seja bem a mesma coisa… e eu estou muito cansado dessas viagens emocionais…
…estica o seu cálice meio cheio (…ou meio vazio) na minha direcção…
- isso passa, vais ver… à nossa, rapaz…- brinda efusiva…
- …e à confusão dos nossos inimigos, amiga – complemento o cumprimento, com um suave tilintar de cristais…
…terminamos o resto de um trago simultâneo, como para dissipar de vez do pensamento antigas expectativas perdidas…
…pousa os cálices na bandeja que jaz num tapete persa e levanta o corpo alvo para fechar a janela, enquanto lhe admiro a silhueta que a luz da vela desenhou na parede…
…move-se felina junto a mim, arrasta o lençol que me cobre para os meus pés e beija-me a face, os lábios, o pescoço, o tronco, despindo o tecido que lhe cobre os seios, que me oferece como tâmaras frescas ofertadas a um peregrino refugiado num qualquer oásis num fim de uma longa jornada no deserto… 
… olhos nos olhos, passa a língua pelos dentes… após o que mergulha sábia e mansamente a boca sobre o meu falo, deixando-nos levar pelas ondas de prazer mútuo…
…breves minutos depois, lança-me um vislumbre de feitiço, pestaneja lentamente, enquanto ergue o tronco e encaixa docemente as ancas sobre o meu colo, enlaçando as pernas longas nos meus quadris, acendendo um fogo húmido nos nossos baixo ventres, em movimentos de crescente cadência rítmica…
(…)
…acordo com o sol já alto, meio escondido entre as nuvens, a lamber-me o rosto, entrando pela vidraça da janela, cinco palmos acima da minha cabeça…
…deitado de bruços, com o leve peso dela, deitada a meio-corpo sobre as minhas costas, tacteio a mesa de cabeceira ao meu lado, apanho o telemóvel e verifico as horas… quase onze da manhã…
…sinto o corpo dela rolar, ainda a dormir, para o outro lado… sento-me devagar na borda da cama, pés descalços no soalho de madeira, cubro-lhe com o édredon o peito que ficara exposto…
...levanto-me e vou até à casa-de-banho, agarrando um Camel e o meu isqueiro pelo caminho… ali abro a porta do pequeno varandim e acendo o cigarro, olhando a vida lá fora, o Tejo lá ao fundo, espreitando através do casario, o céu cinzento na outra margem a adivinhar chuva…
…tomo um duche de água fria e regresso, toalha enrolada na cintura, apanhando a roupa, ainda espalhada pelo chão…
…enquanto me visto, de novo sentado na orla da cama, sinto um suave toque de dedos nas omoplatas e um leve ardor ao passarem pelas marcas das unhas deixadas na minha pele…
- já vais…? – pergunta-me com voz de sono…
- sim… vou trabalhar…
- hoje é sábado, Pedro…
…rodo o pescoço para lhe ver a cara ainda com vontade de continuar a dormir…
- eu sei, mas ontem disse-te que ia trabalhar, lembras-te…?
…acena com a cabeça e boceja longamente, enroscando-se mais…
- tens leite e fruta no frigorifico…
- não me apetece, nina…. tomo um café lá fora …
…acaricio-lhe a franja do cabelo…
- quando nos vemos outra vez…?
…beijo-lhe a face…
- sabes bem que não sei, Lai…e nem tu sabes também… um destes dias…
…segura-me o rosto com as mãos quentes e dá-me um leve toque, lábios com lábios…
- porta-te bem, rapaz…- sorri, mergulhando de novo no torpor de Hipnos…
- tu também, rapariga…- esboço um sorriso…
…vislumbro a chama da vela que ainda resiste, tremeluzente, após uma noite de vigília, iluminando este canto do mundo…
…aproximo a mão em concha e sopro levemente, apagando-a…
…apagando também algo em mim…
…saio devagar, em silêncio…
…na rua começou a cair uma chuva miudinha, outra vez, como ontem à noite…
…puxo a gola do casaco para cima…
…o sol fugiu de novo…
…escureceu tudo à minha volta, até que qualquer vela se acenda um dia destes…
…nada de novo…
…”life goes on”…


JP ®





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