…ela estica o pescoço um pouco acima do volante,
tentando vislumbrar um espaço para estacionar, murmurando um palavrão
entredentes…
- é sempre a
mesma merda para arrumar o carro aqui…
…olho para uma estreita rua contigua à minha direita…
- e aqui…? –
pergunto…
- não dá… por
causa da recolha do lixo…ainda me riscam o carro todo com os caixotes…
- espera… -
saio para a rua e desço uns metros até perto do final da rua, acenando-lhe
depois…
…desliza com a viatura até junto de mim e indico-lhe
um espaço vago num pequeno largo à esquerda…
…pisca-me o olho pestanudo e sinaliza-me um “thumb up”
quando passa por mim…
…encosto-me numa ombreira larga de uma antiga
mercearia de bairro, com umas maciças portas de madeira, tingidas de verde
descolorado, puxo a gola do impermeável para cima e acendo um cigarro…
…escuto um som surdo da porta do lado do condutor a
bater e o bip-bip agudo do fecho centralizado…
…depois o toc-toc dos saltos das botas pretas, subidas
até ao joelho, em cadência lenta, até ela surgir da penumbra à minha frente…
…balança a mala numa das mãos e com a outra tira-me o
cigarro da boca…
- notei que andas
a fumar muito, sabias…? – dá uma
passa, soltando o fumo para o ar…
- já me disseram
isso muitas vezes ultimamente… - respondo num meio sorriso…
…dá-me um beijo leve nos lábios, dá um piparote no
tabaco para a calçada do passeio e enfia um braço no meu…
- por hoje já
chega… vamos embora que tá a ficar frio… é incrível como consegues andar de
t-shirt com este tempo…
- dizes tu…com
essa quase mini-saia, né…?
…zizagueamos rua acima e entramos no prédio secular,
ponteado na frontaria com azulejos azuis e brancos… …a porta da entrada range pesadamente
ao ser franqueada e acostumamos a visão à fraca luminosidade da lâmpada que
pende acima de nós…
…os degraus de madeira rangem enquanto subimos os três
andares antigos até às águas-furtadas onde habita…
…agarrada ao corrimão, verde lima de ferro antigo,
enfeitado de motivos florais, balança as ancas, na minha frente, as “bochechas”
das nádegas a saltar à altura dos meus olhos…
… irresistivelmente, dou-lhe uma
palmada suave nos glúteos, mão semi-aberta…
…continuando a subida, olha-me de soslaio, com sorriso
provocador, por cima do ombro…
…mais um lanço de escada e continua a dança à minha
frente, de costas para mim… nova palmada carinhosa, de cima para baixo, agora
na nádega direita, roçando os dedos pela coxa…
…abafa um riso, pára encostada à parede, com o olhar a
bailar…
- pára, parvo…
- e puxa-me pela manga do casaco de encontro a si…
…o temporizador da lâmpada do átrio da entrada termina
o seu ciclo e ficamos iluminados pela escassa luz nocturna de uma lua a três
quartos, que entra um pouca acima pela clarabóia do telhado…
…lábios molhados encontram-se com fulgor, mãos
ansiosas percorrem o corpo um do outro com volúpia…
- espera… –
diz-me ofegante – …ainda acordamos os
velhotes do andar aqui ao lado…
…subimos o último lanço de escada…
…apalpa o fundo da mala, tira a chave do apartamento e
entramos, fazendo voar a roupa pelo ar, aterrando com ardor nos lençóis
cor-de-rosa da cama larga, sob a suave cor âmbar do abajour de um antigo
candeeiro de pé…
(…)
…debruçado sobre ela, sinto um estremecer entre as
suas coxas, depois de um par de convulsões pelo seu corpo, abafa um sussurro
mais alto de satisfação, enquanto entrevejo os seus dedos dos pés
contorcendo-se prazenteiramente…
…puxa-me mansamente pelo cabelo, arrastando-me para
cima do seu peito e toma-me o rosto entre as mãos, enfiando-me a língua
garganta abaixo…
- chupas-me tão
bem como uma gaja… - suspira em comentário de bissexualidade há muito
assumida…
- é o meu lado
feminino a vir à tona… - digo a rir…
- estúpido…
- devolve-me a gargalhada – já tava com
saudades disto…
- disto…?
- de ti, da
gente… assim…
…beijo-lhe a testa carinhosamente, sentindo o sabor
salgado do suor, dela e meu…
- isso da
“gente” é muito abrangente para o nosso caso, nina…
- tu entendestes
o que quis dizer… quando falo da “gente” é assim como estivemos e estamos hoje…
sei bem como é o nosso “caso”… mas isso não impede que tenha tido saudades
tuas, certo…?
…deslizo lateralmente pela sua pele clara, apoiando-me
no cotovelo direito, pernas entrelaçadas…
- pode ser… e
sentiste isso apenas porque sou uma boa foda…?
…sacode o curto cabelo arruivado da testa e endurece o
olhar…
- porra… -
diz enfática - é apenas isso que sou pra
ti…? …uma boa foda…?
…inclino a cabeça e suavizo a conversa…
- não…aliás,
também és uma boa foda, sim… mas gosto de estar contigo, conversar contigo
também…conseguimos ter conversas de jeito e és inteligente… sabes que isto é
essencialmente cama, mas também nos damos bem fora dela…
- então estamos
de acordo nisso… se fosse apenas queca também era uma chatice…- recupera o
sorriso…
- desculpa, de
qualquer modo… também me expressei mal há pouco…
…estica o braço esquerdo e o corpo nú para trás, em
direcção do alçado da cama e tacteia um maço de cigarros…
- conhecemo-nos há
quê…? …quinze, vinte anos…? – faísca a pedra do meu Zippo, que lhe apanhei
caído no chão…
- desta forma,
há doze anos, Lai… antes… há vinte e cinco, se quisermos considerar o ano em
que nos conhecemos e depois só nos reencontrámos mais tarde - preciso eu
depois de fazer um pequeno esforço de memória, enquanto ela me estende o
cigarro já aceso, cuja oferta declino… (por
hoje já chega, lembras-te...?)
- pois é…-
sorri nostalgicamente – apareceste lá no
colégio com o teu amigo Johnny que andava na minha turma e ainda andaste aos
chochos com aquela gaja betinha da Praça da Armada… - diz-me em tom de
gozação…
- e tu eras
morena nessa altura, tinhas o cabelo comprido até ao rabo, namoravas com um
tipo que tinha a mania que era cowboy, tocavas viola e eras um “pau-de-fio” –
retruco em tom de gozo…
- as cenas de
que lembras, caraças… ainda essa tenho a viola… acho que tá na casa dos meus
pais – deita a cabeça no meu colo – e
que conversa é essa do “pau-de-fio”, meu…? …tou gorda agora, é…? –
belisca-me a barriga, fazendo uma careta divertida…
- nada disso,
rapariga… para mãe de gémeos tão nova como foste e agora quarentona, tás um
espectáculo …- aperto-lhe o nariz, devolvendo o “cumprimento”…
- …é…os meus
filhotes foi praticamente a única coisa boa que o tal cowboy me deu…- diz
cismando - …e tão uns homenzinhos…
- têm quê agora….?
…20 anos, não é…?
- sim… e têm boa
cabeça… a mãe com a idade deles tinha menos juízo… - suspira - …e tu, nestes últimos anos, até andastes
desaparecido durante uns tempos…
…deito-me de costas… pouso a cabeça no colchão, com o
olhar vago nas ripas da madeira castanha do tecto a desviar-me para outras
paragens…
- foi…
provavelmente pelas mesmas razões que tu também andaste…
…morde levemente um polegar, também com o pensamento
longe dali por uns segundos…
- pro-va-vel-men-te…
– soletra, sentada, tomando balanço para se levantar…
…sai da cama e esmaga a beata num cinzeiro de
cerâmica, enquanto saltita até à casa de banho… ouço água a correr…regressa,
com a cara fresca, molhada, com uma sweat-shirt vestida, roxa e tamanho XXL, a
roçar os joelhos…
- apetece-me um
Porto… queres…?
- pequenino…
- exemplifico a medida com um gesto de mão, recostado num almofadão, despido
por baixo do édredon…
…desliga a luz do candeeiro que ilumina a larga
assoalhada, tipo loft, e volta para o leito, equilibrando dois pequenos cálices
de cristal com liquido rubi, numa pequena bandeja, com uma vela aromática
acesa…
…afasta um opaco cortinado, negro com estrelas
prateadas e abre a janela sobranceira à cabeceira da cama…
- não vais ficar
com frio…?
- é só por um
bocadinho… - sorve o Offley, entregando-me o meu - …gosto do sentir o ar da noite…
…duas da manhã e uma lufada fresca entra na casa…
… senta-se, virada para mim, pernas cruzadas, o
pequeno copo junto ao peito…
- então, diz-me
lá… estes anos de “sossego” foram bons….?
…acho graça ao termo aplicado…
- pode-se dizer
que teve momentos bons e outros menos bons… e tu….?
- também foi por
aí…podia ter sido melhor… mas não foi mau…bem pelo contrário…
- ele ou ela…?
- ela… –
sorri da minha curiosidade – encaixávamos
bem a vários níveis, mas acho que se acagaçou por causa da família… enfim…se as
pessoas não se assumem, também não posso fazer milagres… mas foi pena…
…acena-me com a cabeça, incentivando e passando-me a
palavra…
- comigo foram
uma série de factores… ainda hoje estou para perceber o porquê de certas
situações e atitudes…de ambos… e parece que cada vez me convenço mais que devia
ter ficado no meu canto…
- e valeu a pena…?
…respiro fundo….o sabor e o perfume do vinho adoça-me
a boca e a fala…
- deu para sonhar um
pouco quando já não acreditava em sonhos… apenas acho que acabei por despertar
de tudo isso de modo um bocado duro… não esperava que fosse assim, depois de
tanto acreditar…
- não me
respondeste, Pedro… - desvia uma madeixa dos olhos, sorrindo ao de leve…
- acho que valeu a
pena, sim, Lai… quando amas alguém, vale sempre a pena, mesmo que doa durante e
depois de todo esse processo…
- eu sei,
querido… e como sei acredita… como é que diz a canção…? “Quem nunca curtiu uma
paixão, nunca vai ter nada não”, não é…?
- é…-
confirmo o refrão – embora não seja bem a
mesma coisa… e eu estou muito cansado dessas viagens emocionais…
…estica o seu cálice meio cheio (…ou meio vazio) na
minha direcção…
- isso passa,
vais ver… à nossa, rapaz…- brinda efusiva…
- …e à confusão
dos nossos inimigos, amiga – complemento o cumprimento, com um suave
tilintar de cristais…
…terminamos o resto de um trago simultâneo, como para dissipar
de vez do pensamento antigas expectativas perdidas…
…pousa os cálices na bandeja que jaz num tapete persa
e levanta o corpo alvo para fechar a janela, enquanto lhe admiro a silhueta que
a luz da vela desenhou na parede…
…move-se felina junto a mim, arrasta o lençol que me
cobre para os meus pés e beija-me a face, os lábios, o pescoço, o tronco, despindo
o tecido que lhe cobre os seios, que me oferece como tâmaras frescas ofertadas a
um peregrino refugiado num qualquer oásis num fim de uma longa jornada no
deserto…
… olhos nos olhos, passa a língua pelos dentes… após o
que mergulha sábia e mansamente a boca sobre o meu falo, deixando-nos levar
pelas ondas de prazer mútuo…
…breves minutos depois, lança-me um vislumbre de feitiço,
pestaneja lentamente, enquanto ergue o tronco e encaixa docemente as ancas
sobre o meu colo, enlaçando as pernas longas nos meus quadris, acendendo um
fogo húmido nos nossos baixo ventres, em movimentos de crescente cadência
rítmica…
(…)
…acordo com o sol já alto, meio escondido entre as
nuvens, a lamber-me o rosto, entrando pela vidraça da janela, cinco palmos
acima da minha cabeça…
…deitado de bruços, com o leve peso dela, deitada a
meio-corpo sobre as minhas costas, tacteio a mesa de cabeceira ao meu lado,
apanho o telemóvel e verifico as horas… quase onze da manhã…
…sinto o corpo dela rolar, ainda a dormir, para o
outro lado… sento-me devagar na borda da cama, pés descalços no soalho de
madeira, cubro-lhe com o édredon o peito que ficara exposto…
...levanto-me e vou até à casa-de-banho, agarrando um
Camel e o meu isqueiro pelo caminho… ali abro a porta do pequeno varandim e
acendo o cigarro, olhando a vida lá fora, o Tejo lá ao fundo, espreitando
através do casario, o céu cinzento na outra margem a adivinhar chuva…
…tomo um duche de água fria e regresso, toalha
enrolada na cintura, apanhando a roupa, ainda espalhada pelo chão…
…enquanto me visto, de novo sentado na orla da cama, sinto
um suave toque de dedos nas omoplatas e um leve ardor ao passarem pelas marcas
das unhas deixadas na minha pele…
- já vais…? –
pergunta-me com voz de sono…
- sim… vou
trabalhar…
- hoje é sábado,
Pedro…
…rodo o pescoço para lhe ver a cara ainda com vontade
de continuar a dormir…
- eu sei, mas ontem
disse-te que ia trabalhar, lembras-te…?
…acena com a cabeça e boceja longamente, enroscando-se
mais…
- tens leite e
fruta no frigorifico…
- não me
apetece, nina…. tomo um café lá fora …
…acaricio-lhe a franja do cabelo…
- quando nos
vemos outra vez…?
…beijo-lhe a face…
- sabes bem que
não sei, Lai…e nem tu sabes também… um destes dias…
…segura-me o rosto com as mãos quentes e dá-me um leve
toque, lábios com lábios…
- porta-te bem,
rapaz…- sorri, mergulhando de novo no torpor de Hipnos…
- tu também,
rapariga…- esboço um sorriso…
…vislumbro a chama da vela que ainda resiste,
tremeluzente, após uma noite de vigília, iluminando este canto do mundo…
…aproximo a mão em concha e sopro levemente,
apagando-a…
…apagando também algo em mim…
…saio devagar, em silêncio…
…na rua começou a cair uma chuva miudinha, outra vez,
como ontem à noite…
…puxo a gola do casaco para cima…
…o sol fugiu de novo…
…escureceu tudo à minha volta, até que qualquer vela
se acenda um dia destes…
…nada de novo…
…”life goes on”…
JP ®
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