…penso agora nisso, enquanto as olho, meio hipnotizado,
tentando, debalde, vislumbrar nelas tudo isso que a quiromancia diz ver,
adivinhar, interpretar…
…coincidências da vida fazem com que esteja neste
momento a ouvir o Camané a cantar o belíssimo e antigo “Fado da Sina”…
JP ®
…traz-me a lembrança uma ocasião, devia ter uns 20
anos então, em que fui ao casamento da Susana…amiga minha ganha por tabela de
ser amiga também da Elisabete (a Beta, como era tratada na intimidade da família
e amigos), uma loira pequenina que namorei nessa altura da minha vida…
…a Susana era (penso que ainda seja, porque a última
vez que a vi foi há mais de vinte anos) uma rapariga com uma beleza diferente,
cabelo longo muito negro, da mesma cor dos seus olhos expressivos e grandes, rosto
comprido de tez morena e nariz cleopatrico, corpo de formas generosas e alta
para os padrões normais da mulheres da sua geração…
…os seus antepassados ciganos (embora já algo aculturados),
que sempre se orgulhou de mostrar, eram evidentes em pequenos pormenores de
como se vestia ou nos requebros que por vezes exibia quando dançava…
…quando nos conhecemos, a empatia foi praticamente instantânea,
talvez por sermos parecidos em questão de feitio, no que toca a falar tudo de
forma frontal… às vezes tanto que incomodava as mentes mais fingidas e
dissimuladas… e ela até conseguia ser mais dura e incisiva que eu, que na época
não o era como reconheço que sou hoje…
…e aguentava beber, sem que isso lhe “bebesse” o
juízo, de uma forma estonteante… nunca vi conheci ninguém que, com tanta
ligeireza, virasse copos de vodka ao longo de uma noite como ela…
…recordo-me que a festa de casamento dela foi apenas
de um dia, fugindo dos padrões tradicionais do povo rom, em que chegam a durar
semanas… no entanto, sentia-se no ar a alegria própria da sua etnia de origem e
da importância que dão à união de duas pessoas, de duas vidas numa só…
…lembro-me de estar num planalto verdejante, com vista
deslumbrante para a foz do Tejo, no final de tarde ameno de Verão, algures na
linha do Estoril, as crianças em brincadeiras estridentes pelo relvado ajardinado
em meu redor, os mais velhos a vigiá-las com enlevo e bonomia…
…e eu e a Beta, agarrados um ao outro, sentados num
ajuntamento em circulo de pessoal mais jovem, em suave cavaqueira com a noiva,
radiosa no seu longo vestido pérola, salpicado do champagne que saltou das
taças em inúmeros brindes…
…alguém alvitrou, no meio da conversa, dos dotes da
Susana, herdados da sua avó, para ler as linhas da mão e quando dei por mim,
tal como outros antes, a minha amiga tinha as minhas mãos abertas sobre o seu
colo, perscrutando o emaranhado de traços que ainda hoje tenho nelas…
…sorriu e disse, sem desviar os olhos do mapa do
destino, que eu tinha tanto para ler que podia ficar ali a tarde inteira…
…do pouco que me recordo, disse-me que tinha as linhas
muito marcadas, expressivas e fundas, indicio de muita intensidade em quase todos
os aspectos e que parecia que a minha vida ia dar algumas reviravoltas até ficar
mais estável…
…mesmo sendo algo céptico, aconteceu algo que
entretanto me deixou algo perturbado, passado uns tempos…
…a seguir a mim, a Elisabete sentou-se na frente da
amiga, sorridente e brincalhona, pedindo para “ler o seu futuro”…
…no meio das gargalhadas em volta e no tropel das
conversas cruzadas, não sei se alguém terá notado no que vi no olhar da Susana
que ficou turvo, mais negro que os seus olhos e mais cintilante, assim que
recebeu as mãos da amiga e perdeu o sorriso estampado no rosto nos poucos
segundos em que atentou nos riscos na pele clara assente nos seus joelhos…
…rapidamente, desviou o assunto da conversa para outro
pólo, desculpando-se à amiga que continuaria noutro dia, porque estava cansada…
…ainda hoje penso se a Susana terá vislumbrado ou
sentido algo sombrio nessa tarde que a fez ter aquela atitude, que depois
interiorizei à distância e à dramática sucessão dos acontecimentos…
…certo é que menos de um ano depois, a Beta e eu já trilhávamos
caminhos diferentes…ela era uma boa rapariga, mas acabou por se perder um pouco
no seu percurso de vida, enveredou por caminhos que a conduziram a um beco sem
saída na sua óptica…e que a terá feito optar por, num dia de chuva intensa
(recordo-me bem de quando me deram a notícia), desistir de tudo e terminar a
sua ainda curta vida terrena, com um salto para o vazio…
…isto foi há muito tempo e pelo que sei que as linhas
que traçam o futuro na mão direita são mutáveis ao longo dos anos, enquanto as
que definem as características inatas de cada um se mantêm imutáveis na mão
esquerda…
…para um leigo no assunto e olhando agora novamente
para a palma de cada uma das minhas mãos, sinto vontade de apagar estas linhas
que continuo a ver ainda cravadas na pele…e fintar a dita intensidade (que tive
e tenho, para o bem e para o mal) que dizem que me trouxeram ou trarão à minha
vida…e talvez conseguir desenhar nelas algo mais simples, suave e feliz para me
guiar até ao final dos meus dias…
…mas sei que isso é impossível e vou continuar a ter a
esperança que elas me reservem, pelo menos, um destino sem sonhos lindos, mas
sem sobressaltos de alma ou coração…
JP ®
“Fado
da Sina” – Camané
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