quarta-feira, 1 de maio de 2013

Memórias do século passado V - …as linhas da vida (e da morte)…

...as minhas mãos carregam a minha vida, passada, presente, futura, desenhada nas palmas, em linhas profundas…

…penso agora nisso, enquanto as olho, meio hipnotizado, tentando, debalde, vislumbrar nelas tudo isso que a quiromancia diz ver, adivinhar, interpretar…

…coincidências da vida fazem com que esteja neste momento a ouvir o Camané a cantar o belíssimo e antigo “Fado da Sina”…
JP ®


…traz-me a lembrança uma ocasião, devia ter uns 20 anos então, em que fui ao casamento da Susana…amiga minha ganha por tabela de ser amiga também da Elisabete (a Beta, como era tratada na intimidade da família e amigos), uma loira pequenina que namorei nessa altura da minha vida…

…a Susana era (penso que ainda seja, porque a última vez que a vi foi há mais de vinte anos) uma rapariga com uma beleza diferente, cabelo longo muito negro, da mesma cor dos seus olhos expressivos e grandes, rosto comprido de tez morena e nariz cleopatrico, corpo de formas generosas e alta para os padrões normais da mulheres da sua geração…

…os seus antepassados ciganos (embora já algo aculturados), que sempre se orgulhou de mostrar, eram evidentes em pequenos pormenores de como se vestia ou nos requebros que por vezes exibia quando dançava…

…quando nos conhecemos, a empatia foi praticamente instantânea, talvez por sermos parecidos em questão de feitio, no que toca a falar tudo de forma frontal… às vezes tanto que incomodava as mentes mais fingidas e dissimuladas… e ela até conseguia ser mais dura e incisiva que eu, que na época não o era como reconheço que sou hoje…

…e aguentava beber, sem que isso lhe “bebesse” o juízo, de uma forma estonteante… nunca vi conheci ninguém que, com tanta ligeireza, virasse copos de vodka ao longo de uma noite como ela…

…recordo-me que a festa de casamento dela foi apenas de um dia, fugindo dos padrões tradicionais do povo rom, em que chegam a durar semanas… no entanto, sentia-se no ar a alegria própria da sua etnia de origem e da importância que dão à união de duas pessoas, de duas vidas numa só…

…lembro-me de estar num planalto verdejante, com vista deslumbrante para a foz do Tejo, no final de tarde ameno de Verão, algures na linha do Estoril, as crianças em brincadeiras estridentes pelo relvado ajardinado em meu redor, os mais velhos a vigiá-las com enlevo e bonomia…  

…e eu e a Beta, agarrados um ao outro, sentados num ajuntamento em circulo de pessoal mais jovem, em suave cavaqueira com a noiva, radiosa no seu longo vestido pérola, salpicado do champagne que saltou das taças em inúmeros brindes…

…alguém alvitrou, no meio da conversa, dos dotes da Susana, herdados da sua avó, para ler as linhas da mão e quando dei por mim, tal como outros antes, a minha amiga tinha as minhas mãos abertas sobre o seu colo, perscrutando o emaranhado de traços que ainda hoje tenho nelas…

…sorriu e disse, sem desviar os olhos do mapa do destino, que eu tinha tanto para ler que podia ficar ali a tarde inteira…  

…do pouco que me recordo, disse-me que tinha as linhas muito marcadas, expressivas e fundas, indicio de muita intensidade em quase todos os aspectos e que parecia que a minha vida ia dar algumas reviravoltas até ficar mais estável…

…mesmo sendo algo céptico, aconteceu algo que entretanto me deixou algo perturbado, passado uns tempos…

…a seguir a mim, a Elisabete sentou-se na frente da amiga, sorridente e brincalhona, pedindo para “ler o seu futuro”…

…no meio das gargalhadas em volta e no tropel das conversas cruzadas, não sei se alguém terá notado no que vi no olhar da Susana que ficou turvo, mais negro que os seus olhos e mais cintilante, assim que recebeu as mãos da amiga e perdeu o sorriso estampado no rosto nos poucos segundos em que atentou nos riscos na pele clara assente nos seus joelhos…  

…rapidamente, desviou o assunto da conversa para outro pólo, desculpando-se à amiga que continuaria noutro dia, porque estava cansada…

…ainda hoje penso se a Susana terá vislumbrado ou sentido algo sombrio nessa tarde que a fez ter aquela atitude, que depois interiorizei à distância e à dramática sucessão dos acontecimentos…

…certo é que menos de um ano depois, a Beta e eu já trilhávamos caminhos diferentes…ela era uma boa rapariga, mas acabou por se perder um pouco no seu percurso de vida, enveredou por caminhos que a conduziram a um beco sem saída na sua óptica…e que a terá feito optar por, num dia de chuva intensa (recordo-me bem de quando me deram a notícia), desistir de tudo e terminar a sua ainda curta vida terrena, com um salto para o vazio…

…isto foi há muito tempo e pelo que sei que as linhas que traçam o futuro na mão direita são mutáveis ao longo dos anos, enquanto as que definem as características inatas de cada um se mantêm imutáveis na mão esquerda…

…para um leigo no assunto e olhando agora novamente para a palma de cada uma das minhas mãos, sinto vontade de apagar estas linhas que continuo a ver ainda cravadas na pele…e fintar a dita intensidade (que tive e tenho, para o bem e para o mal) que dizem que me trouxeram ou trarão à minha vida…e talvez conseguir desenhar nelas algo mais simples, suave e feliz para me guiar até ao final dos meus dias…

…mas sei que isso é impossível e vou continuar a ter a esperança que elas me reservem, pelo menos, um destino sem sonhos lindos, mas sem sobressaltos de alma ou coração…


JP ®
 “Fado da Sina” – Camané

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