sábado, 10 de novembro de 2012

Memórias do século passado I – Omaha Beach


Final de Agosto de 1982…
…eu, quinze anos frescos e uma vida para disfrutar (quase) sem preocupações…

…uns dias no Algarve já “foram” (maravilhosos em Monte Gordo, com acampamento base no Azinhal) e também acabou o Mundial de Futebol em Espanha (o primeiro que vi em TV a cores), na única vez em que torci pelo Brasil por não ter tido as habituais “ajudinhas” dos árbitros e por apresentar verdadeira magia no relvado (Zico, Sócrates, Falcão, Éder, Júnior, Toninho Cerezo, Leandro, Paulo Isidoro… até dói pensar como foram abatidos tão cinicamente por um quase “renegado” italiano chamado Paolo Rossi…)

…está próxima a primeira “fuga” a sério para o “estrangeiro”… (as idas à raia espanhola não contavam como tal…)
…os meus pais a julgar-me na terrinha com os meus avós e estes a pensarem-me em Lisboa com os meus pais…  …não havia telemóveis…  e os meus avós ainda não tinham telefone em casa…

…um plano traçado ao pormenor, mais de meio ano antes, no frio do Inverno, quando és adolescente em fogo e o Verão é o teu maior anseio…
… viagem para ir trabalhar nas vindimas, em França… em França, bolas… para mim, quase o equivalente a ir à Lua nessa época …

…com mais dois amigos de infância que, na hora H, se baldaram… (e então mal imaginava que ia ser este um dos “filmes” recorrentes da minha vida…)
…mas então, embora com pena de não ir acompanhado, não ficaram ressentimentos, em nome da amizade, que existia de facto…

 …quase um dia e 1800 km de estrada (então, estrada a sério depois de sair de Portugal, claro), com paragens num vilarejo do País Basco (…noite escura…) e noutra vila perdida perto de Poitiers (…numa tarde com sol…), à garupa de um pesado de passageiros que, com muita boa vontade, podia ser apelidado de autopullman…
…até chegar a uma aldeiazinha (de que não me recordo o nome…) relativamente perto de Bayeux (cidade antiga e linda, linda, linda…), na Normandia…

…descanso da viagem, numas simpáticas camaratas rústicas que seriam a minha casa por quinze dias, e depois o começo do trabalho a sério nas vinhas dos campos em redor…
…a primeira visão dos vinhedos (semelhantes aos do Douro, mas em terreno plano) e pensar que ia fazer aquilo com uma perna às costas… (eu que até fazia vindimas na Beira Baixa pendurado nas videiras) … ideia que abandonei após dois dias de labuta… até encontrar o ritmo certo de corte e transporte dos cachos…

…sábado de manhã, depois da primeira semana de trabalho… no ritmo de chapa ganha, chapa gasta… eu, dois putos franceses um pouco mais velhos que eu (os portugueses que foram de viagem comigo eram uns verdadeiros “queques”) e o Lenny (Lennart, acho que era esse o nome dele em concreto), um sueco de quase 20 anos, já batido de anos anteriores na região e nas vindimas e o único com carta de condução, fomos de carro alugado, para norte, na direcção da costa, para uns mergulhos no mar fresquinho que nos fizesse esquecer da torreira diária, de corpos suados e cansados no final do dia…
 …umas poucas dezenas de quilómetros de caminho até Vierville-sur-mer e no caminho o Lenny dizia-nos , no seu inglês nasalado e lento (hoje já sei que os cigarros de enrolar dele de certeza que tinham “algo” mais do que tabaco…): “Vou levá-los a um lugar que vão recordar para sempre”...

…e o resto da malta estava na boa… tínhamos connosco umas garrafas com vinho da quinta, cerveja (morna, mas que a água do mar podia refrescar…), umas sandes de mortadela  e mais comida devia haver para comprar por lá (onde quer que fossemos)…
…desde que chegássemos à praia era tudo o que mais queríamos…

 …estacionamos o carro no litoral, num caminho de terra batida… ouvíamos o bramar das ondas quando saímos do “bote”, mesmo que não as víssemos porque havia alguma vegetação à frente…
…o Lenny foi uns metros à nossa frente, subiu uma leve duna e estacou esperando que chegássemos junto dele para contemplar o cenário … abriu os braços de albatroz (o tipo tinha perto de um metro e noventa de altura e braços proporcionais) e exclamou “…Omaha Beach…”


…os “franciús” olharam um para outro, soltaram uma espécie de “bof” de quase enfado (para alguma desilusão do Lenny, que como eu deve ter ficado na dúvida se eles já conheciam o local ou simplesmente, ignorantes, nem sequer sabiam onde estavam) e desataram a correr para a praia para dar um mergulho…

 …eu fiquei parado ao lado dele… e soltei um “fuck” em tom baixo e prolongado, enquanto estendia o olhar pela extensão do areal e do mar estranhamente calmo…

…contente pela minha reacção, que estava, depreendo, expressa no meu olhar , o sueco perguntou-me, no meio de um sorriso tipo irmão mais velho e ripando de um cigarro “artesanal”, se sabia onde estava…
…disse que sim, claro, o Dia D, o desembarque dos aliados e tudo mais… um lugar mítico, ora…

…e ele retorquiu…”so.. I told you´ll always remember…” (gajo sábio, entendo hoje…)
…acendeu o cigarro com o seu Zippo, arrastando-o com um movimento rápido sobre a coxa direita dos seus jeans (foi a primeira vez que vi aquele tipo isqueiro ser usado assim) … mesmo sabendo que eu não fumava (nessa altura tinha juízo…), solidário esticou-me o tabaco enrolado que declinei com um aceno leve de mão, com os olhos ainda hipnotizados nas ondas e naquele cenário histórico…

…deambulámos pela praia, de oeste para este, cerca de duas centenas de metros e, depois de uns mergulhos, subimos os quatro uma encosta, onde se distinguiam as copas de umas arvores e algumas pessoas vagueando por lá…
…os franceses foram procurar comida com duas simpáticas que tinham conhecido no areal e eu fiquei mais uma vez com o Lenny perante o cenário que estava na minha frente – um imenso cemitério multi-religioso e um memorial com diversos monumentos - cuja estória o meu companheiro de trabalho me elucidou…  


…hoje acho que, na altura, não atingi toda a dimensão de tudo aquilo (até porque era muito puto)…
…já tinha lido sobre o desembarque da Normandia, claro, e também já tinha visto “O Dia Mais Longo” …

…mas acho que só mais tarde, mais velho e sabendo mais sobre a complexidade e das situações que nos surgem na vida, depois de ver entrar pelos olhos dentro, em ecrã gigante, o desembarque em Omaha Beach, tão real  e cruelmente retratado por Spielberg no “Resgate do Soldado Ryan”, pude imaginar (e apenas isso…) o tremendo misto de emoções sentido pelos homens que, naquele dia,  desembarcaram naquela praia…
(e desculpem-me os indefectíveis de qualquer uma das muitas estrelas de “O Dia Mais Longo”, mas o papel do Tom Hanks é magistral…)


JP ®






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