
… as gotas grossas das primeiras chuvas outonais deslizam pelo verde esmeralda dos azulejos da parede e caem mornas, com estrondo surdo, no pavimento da varanda…
…ploc, ping,
ping, ploc…
… três e meia
da manhã e tu, como a chuva lá fora, vais batendo compassadamente na minha
cabeça, prologando (inocentemente, sem o saberes) a minha insónia…
…ping, ploc,
ploc, ping…
… a cama já
me expulsou de cima dela, cansada do meu corpo às voltas, inquietando os
lençóis e saturada dos meus suspiros pesados, soltos de dez em dez minutos,
chamando o sono, sem sucesso…
… o sofá,
companheiro e confidente de tantos pensamentos e sestas aleatórias, acolheu-me
como quem dá abrigo a um velho amigo, meio perdido na noite, de quem já conhece
o peso do corpo e da alma…
…ping, ping, ploc, ploc, ping, ploc…
… o riscar do
fósforo ilumina por instantes a sala, mostrando-me com mais clareza a sombra do
cinzeiro, com duas piriscas queimadas até ao filtro, já distinguido antes na
escuridão, encostado ao resto (pouco) do Bushmills, que repousa dourado na
garrafa na minha frente…
… os olhos
ardem-me, mistura de falta de sono, do fumo da primeira baforada do Camel que
acabei de acender e do leve toque de enxofre que ficou no ar… e, provavelmente,
ardem-me também por outro motivo… mas esse fiz por deixá-lo a secar nas
almofadas… lá atrás no quarto… onde pensei que te tinha deixado também… mas
afinal vieste comigo… presa no pensamento…
…ping, ploc, ping, ploc, ploc, ping…
… derramo o
resto da “agua da vida” na mesma caneca onde bebi o café depois de jantar… se é
que uma sopa e um hamburger no pão se pode chamar isso… mas o apetite, por qualquer coisa que seja, também não dá para mais elaboração…
… “o último
cigarro antes de dormir”, penso para comigo, enquanto o fumo sobe… treta… rs…
daqui pouco, quase de certeza, que vou rebentar outro quase sem dar por isso…
… e a chuva
continua lá fora… e cá dentro…
… ploc, ping, ploc, ploc, ping, ploc, ping, ping…
… a boca tem
um sabor acre, igual ao da vida que faço por deixar deslizar no tempo… em dormência sonâmbula e vazia… deixando os
segundos, os minutos, as horas, os dias e as noites, os anos passarem devagar
até tudo acabar de vez…
… ping, ploc, ploc, ping, ploc, ping, ping, ploc…
… e fico no
meu canto a ouvir a chuva a cantar melancolicamente lá fora… até a ouço quando
não chove, sabes ?… e tu continuas dentro de mim…
… ploc, ping, ping, ploc, ping, ping, ploc…
… gostava que
fosse fácil, tão fácil como apenas fechar os olhos… cerrar os olhos e tu te
evaporares definitivamente da minha vida… o teu olhar, a tua pele, o teu cheiro,
o teu toque, a tua juba negra, a tua cor, o teu sabor, a tua voz, tudo…
… mas assim
como fecho os olhos e não durmo, assim também tu não te vais embora… logo, não
é assim tão fácil…
… ping, ploc, ping, ping, ploc, ping, ploc…
… esta noite queria
abraçar-te e dizer-te adeus, como quem pede para ficar…
… mas os meus
braços, como asas feridas e tombadas, apenas conseguem cingir o meu peito
porque afinal tu não estás, apesar de estares sempre “presente”…
… ping, ploc, ping, ping, ploc, ping, ploc…
… estou cansado…
muito cansado de tudo… gostava de desaparecer também eu… no ar, simplesmente… e talvez reencarnar em algo menos complexo que
um ser humano… algo que fizesse pensar e sentir menos, algo que apenas vivesse
devagarinho como estou agora…
… mais um
suspiro fundo, mais uma passa no cigarro, mais um golo de whisky…
… e ela
continua no seu canto triste…
… ploc, ping, ping, ploc, ping, ploc, ping…
… as horas
passaram lentas e longas até o sol se erguer e tentar furar as nuvens cinzentas…
… tirando
isso, o nascer do dia, que no fundo é a repetição de tudo quotidianamente, nada
mudou… apenas o peito me dói mais, já nem sei se será apenas do excesso de
veneno que teimo em ingerir, disfarçado como prazer de fumar ou se será algo
mais que se enrola, torce e magoa dentro de mim…
….ping, ploc, ping, ping, ploc, ploc, ping…
… vou em
passos lentos até ao quarto de novo…
… o símbolo
chinês de felicidade que está gravado na cabeceira da cama, quase que me faz
desenhar um sorriso no rosto, pensando na ironia do seu significado…
… deito o meu
corpo exausto no colchão, junto os pedaços de mim e, sonhando acordado, encaixo-me
junto a ti…
… tento sincronizar
a minha respiração com a melodia da chuva, que ficou mais lenta agora…
…ploc… ping… ping… ploc… ploc… ping…
…
inevitavelmente, ela irá parar… assim, também talvez eu pare de respirar…e assim ficaria em paz…
…ping… ping… ploc… ping… ping… ploc… ploc… ping…
JP ®
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